segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Maquiavel: a gênese do pensamento político moderno


Em tempos de crescente desilusão com as instituições políticas e demandas por mais transparência, ética e moralidade na política e, por conseguinte, no poder, revisitemos Maquiavel, ainda que num certo nível de generalidades, para tentar interpretar e compreender os desafios de nossa época.
É difícil não reconhecer a crescente desilusão com as instituições políticas, as inconsistências e alianças partidárias exóticas, os desvios na trajetória representativa, entre outros aspectos, vistos como uma afronta à modernidade e ao ideal liberal. A propósito, na obra O moderno príncipe: Maquiavel revisitado, seu autor, o diplomata e cientista político Paulo Roberto de Almeida, assinala que "(...) A demagogia, já sabemos, é o mais recorrente meio utilizado por aqueles que, carentes de outras virtudes administrativas e pessoais, desejam ascender ao principado". De certo modo, esse cenário nos é peculiar.

Nicolau Maquiavel, precursor da ciência política, encarou a sociedade como resultado de fatores observáveis e analisáveis. Desde o século XVI, a intuição de homens como Maquiavel traz à luz aspectos consagrados e atuais para a compreensão das bases em que se assenta o poder político
Quase cinco séculos depois de redigido, O príncipe (1513), livro escrito pelo filósofo italiano Nicolau Maquiavel (Niccolò Machiavelli), continua a instigar a reflexão crítica sobre "a política como forma de poder e o poder como resultante da atuação política". Segundo um dos intérpretes de Maquiavel, Claude Lefort, "a imprescindível obra literária de Niccolò di Bernardo Machiavelli, ou simplesmente Nicolau Maquiavel, o pensador de Florença, não se dirige apenas aos homens de seu tempo, está mais viva do que nunca e continua a interpelar a posteridade" (LEFORT, 1980, p. 11).
O PODER EM PAUTA 
O poder é um tema clássico em ciência política desde os antigos filósofos gregos até os clássicos modernos (Maquiavel, Hobbes, Kant, Rosseau, Hegel, Marx) e chega aos contemporâneos (Foucault). Na tradição liberal ou marxista, o tema ocupou estudiosos em todos os tempos. Remontando as principais teorias desde Maquiavel, algumas das principais reflexões sobre esse instigante tema têm suscitado uma extensa discussão filosófica e científica. Na obra Potência, limites e seduções do poder, editada pela Unesp, seu autor Marco Antonio Nogueira assinala "(...) O poder está em toda parte. Tem muitas faces, múltiplas dimensões e inúmeras falas. Exibe-se e oculta-se com igual dedicação. Ama a exposição e não vive sem o segredo. Podemos odiá-lo, cobiçá-lo, combatê-lo ou apenas temê-lo. Justamente por isso, não temos o direito de ignorá-lo e de não tentarmos compreendê-lo. Se assim procedermos, acabaremos por não saber bem o que fazer com o poder que temos e com todos os pequenos e grandes poderes com que interagimos" (NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da Unesp).

Originalmente, a civilização grega procurou interpretar os fenômenos segundo um processo de racionalização, posição esta que a distinguiu de outras civilizações. O estudo das idéias políticas começa naturalmente, com os gregos antigos, pois foram eles, em sentido real, os primeiros a ter idéias políticas. Entre as contribuições do legado grego para as Ciências Sociais, claramente, situam-se Platão, falando da vida social e política na obra Republica e leis, e Aristóteles abordando uma filosofia de cunho social na obra A política.
Segundo Aristóteles, o homem é um ser eminentemente político e social. Está aí afirmada, de modo radical, a sociabilidade natural do homem no mundo antigo. Mas é com Maquiavel, o primeiro grande pensador moderno, que se inaugura a ciência política. Na contemporaneidade, presente em todas as esferas da vida social e política, o poder enquanto categoria analítica, cientificamente, em Sociologia, Antropologia Política e Ciência Política, nos remete a autores e obras que já se tornaram antológicas. Em comum, elas apresentam a inquietação filosófica e política.
Nos séculos XVI e XVII, Nicolau Maquiavel (Niccolò di Bernardo Machiavelli), um dos precursores renascentistas da Sociologia, escreveu O príncipe. Foi o primeiro grande pensador moderno e precursor da ciência política. Seguramente no pensamento político clássico de Maquiavel, que é a gênese do pensamento político moderno, a noção de poder aparece quando ele introduz o enfoque do Estado em sua noção corporificada na figura do Príncipe, que é algo histórico, porque Maquiavel está presenciando o nascimento do Estado no século XV. Para Maquiavel (1469-1527), o Estado está surgindo como uma organização de dominação e como expressão máxima da violência. O Estado é a única organização cuja ação mobiliza todos, visto que dispõe de todos os meios e bens materiais de gestão e coação. O Estado é um meio de cooptação e coerção que age sobre a sociedade e os indivíduos. A figura do Príncipe é uma forma de corporificação da paz, para que esse conflito seja amenizado, daí a necessidade de instrumentalizar-se o Príncipe. O Príncipe deve governar pela força e pela virtù, que se compõe de várias qualidades pessoais. A virtù que nos propõe Maquiavel é no sentido da capacidade e da qualidade para a realização da história, enquanto força criadora, racionalidade, ação calculada capaz de fazer o homem ser sujeito de sua história. A perspectiva de Maquiavel aponta nesse sentido que a política não comporta voluntarismos, posto que a ação do homem em Maquiavel é marcada pelo cálculo e pelas circunstâncias que permitem a ação política. Fortuna e virtú são meios e fins da ação política, nos aponta Maquiavel, sendo a virtù a capacidade, qualidade de força social, de realização de uma razão calculada, e a fortuna, a ocasião concreta para a realização da ação política do homem dotado de virtù. É a circunstância que permite a eficácia da iniciativa política.
No ensaio "A primeira figura da filosofia da práxis. Uma interpretação de Antonio Gramsci", seu autor Claude Lefort assinala: "A obra de Maquiavel não se dirige, portanto, somente aos homens do século XVI: continua a interpelar a posteridade" (LEFORT, 1980, p. 11)
O fato é que a visão política de Maquiavel em tal perspectiva é fundamental quando se discute a problemática do poder porque se percebe através dela a própria divisão de classes, a partir da noção dos poucos e dos grandes, dos amigos e inimigos. O centro maior de seu interesse é o poder formalizado na instituição do Estado, e a noção de sociedade é trabalhada por Maquiavel no sentido de uma capacidade de o homem influir ou participar do Estado.
AMAR OU TEMER 
O Príncipe é colocado no plano das paixões entre o ser amado e temido. O desejo de poder é algo que se coloca muitas vezes de modo insaciável, requer certa precauções, como o temor ao desprezo e ao ódio. Por outro lado, Maquiavel, ao colocar a exploração no plano político onde os grandes têm o desejo de dominar e governar, nos remete a uma relação de antagonismo e de complementaridade. Uma boa sociedade em tal perspectiva seria aquela que procura se consolidar e onde o "poder" do Príncipe é algo que emana da própria sociedade.
ARQUIVO PESSOAL
Estátua de Maquiavel, na entrada da Galeria Uffizi, em Florença, Itália
Maquiavel comporta várias interpretações. Quando coloca a questão da desigualdade histórica discursa como verdadeiro ideólogo das classes emergentes, chamando os homens que sofrem o processo histórico e colocando a virtùenquanto capacidade e força social para esta realização. Maquiavel nos mostra ainda que o Príncipe não deve camuflar a luta de classes. Afinal, Maquiavel descreve um momento histórico em que a luta de classes acontecia às claras, para justificar o poder do Príncipe através das habilidades, da prudência, das alianças e do segredo, de sua política imediata não se tornar pública.
Parece ser verdadeira a reciprocidade entre o pensamento científico e as configurações sociais e políticas da vida, princípio especialmente referendado pela correspondência entre o pensamento de Maquiavel e as condições de existência social e política atuais. A política em Maquiavel é redefinida como correlação de forças. O homem faz história. Para fazer história, os homens têm de se organizar. Para Maquiavel, fazer história é fazer de modo organizado. Não posso fazer história de modo aleatório, mas sim com os recursos de que disponho, utilizados de forma racional. "Eu não faço a história dos meus sonhos. Eu faço a história possível." Maquiavel faz a apologia da razão do Estado e exalta a força ou vontade de poder (virtù) como primeiro princípio e razão última no governo dos povos. A virtù será o meio, a disposição para atingir os fins e para o agir. A fortuna será os fins. A virtù é o meio no qual a ação poderá funcionar com êxito.
No tempo de Maquiavel, as desigualdades não eram naturais e sim históricas. As desigualdades vão ser um campo político que vai exigir um esforço, através do jogo de forças. Na obra, chama-nos a fazer história num momento em que a história tinha por interesse a unificação da Itália. Neste momento, fazer história, fazer política seria como que uma mercadoria capaz de circular no nível econômico. Maquiavel não representa no seu discurso o interesse burguês. Assumir isto é um jogo perigoso. O discurso de Maquiavel serve aos interesses de qualquer classe social emergente. Segundo Kant, até Marx, quando clamou "Operários de todo o mundo, uni-vos", fez o mesmo discurso de Maquiavel, num outro momento da história, servindo ao proletariado emergente e organizado. Para Maquiavel, quem quer fazer história e participar da história deve se organizar e ter a virtù, senão vai ficar de fora da história. Isso, em Maquiavel, se faz presente até na obra do sociólogo americano Wright Mills, em seu livro A imaginação sociológica, quando diz que "os indivíduos não devem ser objetos da história, mas sim agentes capazes de fazer a história". Propõe Maquiavel em seu discurso para o estadista uma virtù que se distancia da fantasia e do sonho. Política não se faz só com boas intenções, mas também com a força da inteligência.
Na sua modernização da necessidade, Maquiavel de certo modo condena os passivos e os que agitam sem se situarem no contexto. Nós não fazemos história quando cruzamos os braços, nem quando caminhamos sem um plano, sem um rumo. É necessário perceber o caminhar, conhecer o terreno em que se pisa, para evitar erros. Pressupõe Maquiavel, no dramático do poder e na correlação de forças, que somos marcados por interesses diversos. Ter vontade é ter interesses. A vontade seria o sentido eficaz. Nesse sentido, quem quer fazer política num campo minado por interesses tão divergentes vai ter de operar. E os que querem a unificação terão de usar a força. É a partir daí que vem a política enquanto correlação de forças.
Maquiavel está querendo assessorar não sobre os sonhos, não sobre o passado, mas sim para tornar o cálculo o mais exato possível. Isto é uma modernização da moralidade em Maquiavel. Para ele que eu pense o que quiser subjetivamente, mas que objetivamente calcule a minha ação num sentido eficaz. Como exemplo podemos citar : Que o infrator tenha medo da lei, mas que se exija o cumprimento da lei. Ele nos propõe fazermos política com força, mas articulada com a razão. Força no sentido de fazer a própria história. É um apelo à razão, visto que toda política visa implantar uma nova ordem, e os que têm mais força conseguem implantar essa ordem.
A literatura de Maquiavel nos remete a pensar na arte de governar. Possibilita a análise das bases do poder político. Redefine as virtudes. Apresenta o conceito de virtù enquanto força criadora, racionalidade, ação calculada e qualidade do homem de ação que o capacita a realizar sua história. Finalmente, sem querer abreviar, é difícil não reconhecer que, discutindo a natureza do homem, da sociedade e do poder, Maquiavel introduz a história no pensamento político, revolucionando a ciência e colocando a história como um paradigma.
REFERÊNCIAS 
ALMEIDA, P. R. de. O moderno Príncipe: Maquiavel revisitado. Brasília: Edições do Senado Federal, 2010, v. 147. 
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
LEBRUN, G. O que é poder? São Paulo: Brasiliense-Abril Cultural, 1984 (Primeiros Passos, 24). 
LEFORT, C. A primeira figura da filosofia da práxis. Uma interpretação de Antonio Gramsci. In: QUIRINO, C. G.; SOUZA, M. T. S. R. de (orgs.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. São Paulo: T. A. Queiroz, 1980.
MACHIAVELLI, Niccolò (1469-1527). O príncipe, escritos políticos. Tradução Lívio Xavier. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural,1979 ( Os Pensadores). 
MAQUIAVEL, N. O príncipe. São Paulo: Editora Escala, (Grandes Obras do Pensamento Universal, 12).
NOGUEIRA, M. A. Potência, limites e seduções do poder. São Paulo: Editora da Unesp, .

*Sérgio Sanandaj Mattos é sociólogo, professor e ex-diretor da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASESP). É coautor do livro Sociólogos & Sociologia. Histórias das suas entidades no Brasil e no mundo E-mail: ss.mattos@uol.com.br



Nenhum comentário: