Mas, afinal, temos mesmo de conviver com a política? Isto é, o jogo político democrático é nossa única saída?
A política moderna, como nós a praticamos hoje, iniciou-se a partir do Renascimento e, no século XVI, deixou a marca que é ainda a que caracteriza o pensamento político e a ação política de hoje. Administramos a Cidade (1) a partir de duas noções do século XV: utopia e realismo. Em nomes, eis os heróis: Thomas More (1478 – 1535) e Maquiavel (1469-1527)
Em seu livro Utopia, More descreveu uma comunidade ideal sob um estado ideal. As regras que colocou para tal comunidade eram uma mistura de comunismo e liberalismo. Dispensou a propriedade privada e manteve firme e de modo meticuloso a idéia de planejamento urbano e de uso comum de uma série de aparatos necessários para a vida civilizada. Ao mesmo tempo, em sua ilha, tornou vigente toda a liberdade de idéias e de religião. O nome do seu livro foi uma escolha feliz: “utopia” que dizer “não-lugar”, ou seja, o lugar nenhum ou o lugar que não existe.
O excesso de regras do lugar ideal e a proliferação de detalhes minuciosamente postos para compor a cidade indicavam, inclusive, outro traço desse tipo de escrito, e de outras “utopias”: não só lugar que não existe, mas que não existirá. Foi assim que outros escritos parecidos foram então tomados, ao menos até o século XIX. No século XIX, principalmente a partir do marxismo, é que cidades imaginárias com vida feliz se casaram com o pensamento histórico, com a idéia de que haveria como seguir procedimentos para “endireitar” ou “entortar” a história, ou simplesmente fazê-la acontecer, uma vez que seu destino já seria, mesmo, a tal situação paradisíaca. As reformas e as revoluções começaram a ser pensadas, então, como processos tão planejados, para efetivamente acontecerem, como as próprias sociedades planejadas que iriam instaurar.
Maquiavel, por sua vez, fez o contraponto de época com o tipo de filosofia política das utopias. Sua obra mais conhecida, O príncipe, não tinha nada de ideal e, sim, do que veio a ser considerado mais tarde como o “realismo político”. O estado precisa ser construído e, depois disso, preservado. Para preservá-lo, o governo – o príncipe – precisa atuar segundo regras que não são as da moralidade comum, cristã, que se faz vigente entre os cidadãos do próprio estado. Eis aí o impasse.
Esse impasse pode ser resolvido, segundo Maquiavel, por meio de uma saída que, em parte, depois dele, no século XIX, alimentou a idéia de ligação entre utopia e história. Maquiavel trabalha com duas noções para explicar o que pode vir a ser o advento da política do bom governo: a fortuna e a virtù. A fortuna corresponde ao que nós podemos entender como a sorte, o que ocorre no tempo e que pode ser aproveitado. A virtù corresponde à qualidade de alguns homens de perceberem que o momento é propício para a criação do estado e conseqüente manutenção deste, com apoio da população, é claro.
Maquiavel leu os gregos e romanos e os admirava. Mas ele não pensava o tempo como os clássicos a pensaram, ou seja, a partir de um destino que deveria de se cumprir. Ele via a história a partir da metáfora do círculo, a história como um conjunto de repetições. Então, o homem de virtù, o estadista, seria aquele capaz de pegar exemplos de êxito de outros estadistas para aplicá-los à realidade. Não à toa, um homem assim teria carisma e, enfim, apoio popular. Ele é aquele que se aproveita da fortuna e age no que seria o chamado “momento certo”, se antecipando um pouco aos fatos e, enfim, colocando a roda da história em função de objetivos que são seus, do estadista, mas, também, da própria história. É claro que a fortuna pode lhe abandonar e ele perder tudo após ter conseguido tudo. Uma boa parte da história dos heróis fundadores de estados é assim. Mas, uma vez passado o tempo, reconhece-se que, em determinado momento, eles “fizeram o que tinha de ser feito.”
Assim tomado, Maquiavel é o oposto de More. Todavia, em certo sentido, ambos compartilham de uma fé profunda na humanidade. Ambos comungam do espírito do humanismo da época. Assim, para More, se o lugar é bem organizado, não há razão para os homens não viverem em paz. Maquiavel, por sua vez, entende que os homens, o povo, sempre fará menos erros que o príncipe. Mesmo quando erra, o povo erra de modo menos problemático que o erro do príncipe. Ainda que os heróis construtores do estado sejam homens de virtù e, então, carismáticos, é o povo e a liberdade deste que sustenta o que é a melhor vida para a cidade.
A política utópica e a política realista, nesse sentido, possuem um denominador comum: partem da crença de que é possível, de alguma forma, elaborar uma regra feita por nós mesmos para se efetivar sobre nós mesmos em função do “viver bem” – o bom governo é possível. Interessante que Immanuel Kant (1724-1804), depois, no século XVIII, tenha colocado o problema da filosofia política do seguinte modo: o problema todo da filosofia política é este, o de encontrar uma carta constitucional para uma “raça de demônios”. Ao chamar a humanidade de “raça de demônios” e, ao mesmo tempo, achar que o pensamento político pode dar uma regra política para tais seres, Kant já não compartilhava, nem um pouco, do que havia ficado explícito em More e Maquiavel, que sempre imaginaram a raça dos homens como formada, enfim, por homens.
Quando hoje, nos deparamos com as frases contra a política ou com a decepção em relação não só aos governantes, mas à política em geral, não devemos de esquecer que ainda não inventamos outro modo de agir para o funcionamento da vida coletiva senão o chamado modo político. Ou seja, atuamos segundo as verdades que emergem não por uma terceira posição, vinda de fora do mundo, para regrar nossa vida, mas sempre a partir das posições imersas nos conflitos – exatamente os conflitos que Maquiavel não negou, ao contrário, reconheceu todos como sendo necessários.
Um exemplo torna claro o que é a condição da política e, enfim, da liberdade que deve reinar em uma sociedade que faz política. O caso da disputa, detonada há poucas semanas, entre a Rede Globo e a Rede Record. Há um erro de avaliação quando se reduz tal confronto a uma mera disputa de vilões. Muita gente que se diz crítica faz a pergunta: ora, quem vai ficar do lado da ideológica Rede Globo contra o falsário Bispo Macedo e vice-versa? Mas essa pergunta não é boa, não é a pergunta de quem entende o que é a política. Quem entende o que é a política faz outra pergunta: o que se extrai de verdade dos podres que emergem de um lado e de outro, para que se possa colocar a sociedade em um patamar melhor que este? Ou seja, não há um juiz externo à política que possa dar a verdade, a política é feita pelo embate entre opositores, e o que é o correto emerge nas contingências, na apreciação que se pode dar considerando os conflitos. Sem os conflitos, não ficaríamos sabendo dos podres de um lado e de outro no grau que ficamos e, portanto, não poderíamos nem agir segundo o realismo político e nem pensar em projetar utopias necessárias. Em outras palavras, ficaríamos sem ciência e sem esperança.
Vivemos da ciência e da esperança. Vivemos de Maquiavel e de More. Pois vivemos da política e na política. Dizem que, quando formos anjos, e não tivermos mais corpos, não precisaremos mais da política. Mas, até lá, a condição nossa é esta.
© Paulo Ghiraldelli Jr., filósofoFonte:
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