O ator irlandês Richard Harris, como Marco Aurélio: ele soube agradar o povo sem revoltar o exército e teve destino diferente de Pertinax, que foi sangrado no palácio |
Uma conjuntura política complexa (as cidades italianas desunidas e a Europa em convulsão) o fez cair em desgraça, 13 anos depois. Foi a partir desse período que Maquiavel escreveu suas principais obras, inclusive “O Príncipe” — produzida quase exclusivamente com o objetivo de retomar seu antigo emprego (quem quer algo mais romântico prefere pensar que o livro basilar da ciência política mirava a unificação da Itália). Maquiavel era apaixonado pela antiguidade, especialmente o Império Romano. Suas principais impressões sobre sucesso e falibilidade dos governantes foram retiradas de exemplos latinos mais impressionantes. O capítulo 19, do “Príncipe”, é quase inteiramente dedicado à biografia de dez imperadores de um dos períodos mais críticos de Roma.
Maquiavel entrou nessa longa descrição histórica para justificar sua tese de que o líder político deve evitar o ódio e o desprezo das massas — terreno fértil para conspirações. Ele faz um relato entusiasmado sobre Marco Aurélio, um caso de déspota esclarecido, que ficou conhecido como o imperador filósofo. Hollywood fez um filme tecnicamente grandioso, “Gladiador” (dirigido por Ridley Scott), no qual a morte de Marco Aurélio é o estopim da trama. A ascensão de Cômodo, filho natural do imperador, de fato, provocou a ruína da “pax romana”. Até aí, o filme foi fiel à história. O resto é ficção. Para Maquiavel, os sucessores de Marco Aurélio falharam, dando fim à Era de Ouro do império, por não conseguirem agradar, ao mesmo tempo, as duas principais forças de Roma: o povo e os soldados.
Um desses governantes foi Pertinax, sucessor imediato de Cômodo e, certamente, um dos exemplos mais interessantes (e fatais) sobre a volatilidade do poder e os riscos para quem desagrada o próprio exército. Pertinax tinha origem humilde e grande talento como administrador. Fez fama em Roma como disciplinador de legiões em várias campanhas que liderou. Quando Cômodo foi assassinado, era prefeito pretoriano (administrava a Guarda Pretoriana, responsável pela segurança pessoal dos imperadores). Os soldados imediatamente o ajudaram a assumir o comando do império, com a promessa de que receberiam um donativo generoso — recompensa por conquista militar. Só que Pertinax decidiu ignorar o acordo tácito que tinha com seus aliados pretorianos.
Preocupado com as contas de Roma, empreendeu uma série de medidas restritivas — fazendo aquilo que hoje se chama de ajuste fiscal, com o Estado gastando apenas o que arrecada. Precisou enrolar os soldados o quanto pôde. Houve uma primeira revolta logo nos primeiros dias. Contudo, Pertinax conseguiu contorná-la com a promessa de que o donativo seria pago logo que conseguisse vender as propriedades de Cômodo — incluindo escravos e concubinas. Os soldados foram para casa, mas não por muito tempo, pois apenas metade do donativo foi pago. No 86° dia como imperador, Pertinax foi trespassado pelas espadas dos guardas pretorianos (seus aliados) porque não cumpriu a promessa de dividir o poder com eles. Na sequência, algo bizarro, os amotinados fizeram um leilão do trono, vencido por Dídio Juliano, que ofereceu o maior donativo aos soldados.
As lições de Maquiavel continuam atuais, pois suas proposições se baseiam em algo pouco mutável: a natureza do poder. A lógica proposta por ele sempre chocou a ética convencional, mas sua análise dos dilemas políticos (sobre as decisões do poder) é irrefutável. As intenções de Pertinax, por exemplo, foram as melhores. Além de controlar os gastos do império (colocados em um nível perigoso por Cômodo), ele tentava agradar o povo com a retomada de alguns direitos relegados pelo seu antecessor — preocupação considerada irrelevante pelos soldados. Porém, como alerta Maquiavel, nem sempre é fazendo o que parece ser bom que se mantém um trono. Na verdade, o florentino defendia uma espécie de equilíbrio nas decisões que requer um tipo de talento muito específico.
A virtude do príncipe é fazer com que o “mal necessário” (inerente a qualquer administração pública) seja minimamente perceptível para o povo e que não leve seus aliados políticos ao desespero. O famoso “bem a conta-gotas” precisa ser maximizado e propagado para que o povo perceba o esforço do governo, servindo também como reavivamento da esperança dos aliados. Na época de Maquiavel e na antiguidade, a realização dessas operações era bem mais complicada. Hoje em dia, os governantes contam com um leque bem maior de ferramentas administrativas para persuadir o eleitor e as forças políticas que os cercam. Mesmo assim, muitos deles acabam cometendo o erro do desequilíbrio, tão bem ilustrado pelo caso de Pertinax, e acabam sendo “mortos” pelos adversários, senão pelos próprios companheiros.
Fonte:Jornalopção
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