Por Otavio Frias Filho em 12/06/2012 na edição 698.
O primeiro volume da biografia do jornalista Lira Neto sobre Getúlio Vargas merece ser recebido com grande interesse. A publicação de Getúlio – Dos Anos de Formação à Conquista do Poder (1882-1930)[Companhia das Letras, 630 págs., R$ 52,50] dá início a uma série de três livros, a ser concluída em 2014, configurando a mais completa biografia sobre o maior líder político brasileiro.
A julgar pela primeira parte, o trabalho vem sendo executado com meticulosidade exaustiva. É gigantesca a massa de documentos oficiais, livros, artigos na imprensa, memórias e testemunhos que o autor e seus auxiliares dominaram para compor uma narrativa decerto prolixa, mas sempre legível e muitas vezes trepidante.
Todo biógrafo acredita que a vida sob seu exame é extraordinária. Mesmo assim, Lira Neto mantém isenção exemplar em meio às paixões que cercaram seu personagem e dividiram o país.
Não escreve para enaltecer ou para detratar, mas como repórter – atividade que exerceu em Fortaleza antes de se mudar para São Paulo, onde se converteu em biógrafo profissional na década passada, ao publicar uma sequência de livros sobre o escritor José de Alencar, o marechal-presidente Castello Branco, a cantora Maysa e o líder messiânico Padre Cícero.
Talvez se possa atribuir a essa disciplina de repórter a principal lacuna em livro tão bem elaborado. Ainda que este não seja um trabalho de história, falta-lhe ambição analítica, alcance de interpretação e densidade explicativa.
Enquanto a camada aparente dos acontecimentos é descrita com suntuosidade de minúcias (ficamos sabendo até a marca da limusine que conduziu o presidente Washington Luís ao sair deposto do Palácio), as relações de força subjacentes são pouco esboçadas. O autor dispensa, assim, muita possibilidade de articular a vida do biografado aos fatores impessoais que ajudaram a moldá-la.
Terá pesado, nessa escolha, o propósito de tornar a leitura atrativa para um público amplo, menos interessado em implicações sociológicas e controvérsias entre historiadores do que no drama pessoal de figura tão hipnótica.
Lira Neto adota a tendência de todo biógrafo contemporâneo à visada cinematográfica, rica em peripécias e lances de expressão imagética, como se concebida para dar base a um futuro roteiro de cinema ou televisão – talvez ambos. Parece ter resistido, porém, à tentação de fantasiar detalhes e turbinar diálogos, que surgem em profusão, mas sempre alicerçados em alguma fonte escrita.
Poder
Getúlio nasceu em São Borja, na fronteira com a Argentina, em 1882, filho de um potentado local. Foi promotor público, deputado, ministro da Fazenda de Washington Luís, governador do Rio Grande do Sul e candidato a presidente da República. Derrotado na eleição de 1930, fraudada como as anteriores, fez-se líder revolucionário e tomou o poder como chefe de um governo provisório.
Foi confirmado presidente pelo voto indireto em 1934. Esmagou uma insurreição liberal (1932), outra comunista (1935) e ainda outra fascista (1938), tornou-se ditador em 1937 com apoio dos militares e foi por eles deposto em 1945. Reconduzido ao cargo pelo voto popular em 1950, suicidou-se em meio à aguda crise política de agosto de 1954.
Contribuiu como ninguém para ampliar e modernizar o aparelho do Estado, impulsionar a industrialização, inaugurar direitos sociais e introduzir a política de massas no cenário brasileiro. Viveu sob a marca da ambivalência: conciliador e autoritário, modernizante e paternalista, conservador e progressista conforme a ocasião.
Distinguiu-se ainda por duas características incomuns. Exerceu uma ditadura feroz entre 1937 e 1945, mas nunca foi pessoalmente acusado de corrupção. Era um político astucioso e manipulador, que obviamente gostava do poder, mas ao exercê-lo parecia ter em mente objetivos nacionais que transcendiam a política miúda.
Formação
Este primeiro volume trata da parte menos conhecida da vida de Vargas, “dos anos de formação à conquista do poder”, conforme o subtítulo. É inevitável ler a obra como se fosse historiografia reversa ou premonitória, à procura de sinais que antecipem o Getúlio que viria depois e que permitam esclarecer retrospectivamente essa personalidade elusiva, apelidada de “Esfinge” por causa das intenções indecifráveis e do laconismo sorridente.
Como foi possível, por exemplo, que um político provinciano, oriundo de um Estado periférico, chegasse ao ápice nacional numa estrutura tão impermeável como a da política daquela época?
O panorama biográfico dessa fase inicial ressalta como o Rio Grande ganhou vulto econômico e militar a partir da década de 1910, credenciando-se a atuar como elemento de arbitragem quando as elites políticas centrais – paulista e mineira – entravam em desacerto.
Essa capacidade se potencializou a partir de 1923, depois que o acordo de Pedras Altas, orquestrado por Vargas, encerrou três décadas de confronto entre as duas facções que disputavam o poder no Estado sulino.
De um lado estavam os liberais, chamados de maragatos ou federalistas, ligados a uma linhagem de descentralização, parlamentarismo e livre-comércio que provinha dos tempos do Império. De outro estavam os republicanos, chamados de chimangos ou pica-paus, influenciados pela doutrina positivista e adeptos de uma concepção “científica” de governo autoritário. Grosso modo, aqueles prevaleciam na região fronteiriça; estes, na litorânea.
Embora os republicanos tenham controlado a política gaúcha na maior parte desse tempo, enfrentaram resistências intermitentes que deram origem a duas guerras civis, em 1893-95 e 1923.
Getúlio, que tinha parentes nos dois lados do conflito, cresceu em meio a essas dissensões, à sombra do governador republicano Borges de Medeiros, eleito cinco vezes para o cargo. Sua escola de conciliação mesclava movimentos de intimidação e apaziguamento.
O regime gaúcho não diferia do coronelismo político vigente no resto do país, mas tinha uma peculiaridade: suas facções se achavam imbuídas de colorido ideológico nítido e coerente. Como se expressassem, de forma concentrada, a oposição mais difusa entre liberalismo elitista e estatismo autoritário que seria o eixo da política nacional de 1930 a finais do século, com ecos que ainda ressoam.
Cálculo
Evidentemente, Vargas não era um político vulgar. Desde cedo, destacou-se pelo cálculo racional e pela metódica acumulação de poder. É notável o contraste com a turbulência impensada dos que o cercam, a começar dos irmãos, arruaceiros cujas trapalhadas criminais Getúlio tratou de abafar, nem sempre por meios legítimos.
Esse aspecto atávico, tribal, violento (seu pai lutara na Guerra do Paraguai, seu avô combatera na Revolução Farroupilha), estaria presente até o paroxismo de 1954, desencadeado pelo atentado contra Carlos Lacerda, canhestramente urdido nos subterrâneos do Palácio do Catete.
Relembramos ao longo do livro como foi lenta a erosão da República Velha, como demorou até que oligarcas dissidentes e líderes das revoltas tenentistas articulassem uma candidatura viável de oposição à Presidência, apoiada no desgaste crescente do governo central, sobretudo na opinião pública das grandes cidades. E ainda assim Getúlio perdeu.
Parece certo que o desfecho revolucionário teria sido evitado se Washington Luís fosse menos intransigente na imposição de seu sucessor e se não sobreviesse o assassinato –num crime passional – do candidato a vice na chapa de Getúlio, João Pessoa, estopim psicológico da deflagração. Mais certo ainda é que somente a crise econômica de 1929 foi capaz de esvair a sustentação social de um regime que já caducava.
É impressionante a cautela quase apática com que Vargas navegou pela vertiginosa sucessão de episódios. Hesita em aceitar a candidatura; candidato, tenta um acordo secreto com o governo central; derrotado, conforma-se. Quem organiza a insurreição é o círculo imediato de assessores, quase todos amigos de juventude – Lindolfo Collor, João Neves da Fontoura, Flores da Cunha e Oswaldo Aranha.
Até semanas antes de romper com a legalidade, a preocupação de Getúlio é evitar que seu controle da política estadual sofra retaliações do futuro presidente Júlio Prestes, que jamais tomaria posse.
Havia maquiavelismo nessa prudência, mas fica evidente que também houve muita sorte ou acaso – “fortuna” – nesse maquiavelismo. A posteriori, quando o encadeamento dos fatos já premiou o vencedor, a trajetória inteira tende a se apresentar como obra de arte política, sem deixar entrever o quanto terá havido de dúvida, imprevisto e balbúrdia.
Da mesma maneira, o que chamamos de “carisma” do líder – como definir ou identificar algo tão etéreo? – só cristaliza simbolicamente o êxito já consolidado.
Exceto quanto à revelação de alguns detalhes inéditos e episódios secundários, o livro de Lira Neto não parece trazer contribuição original ao relato de uma vida já tão esmiuçada e conhecida. Ainda assim é uma colossal reconstituição dessa existência única na história brasileira, expressa num andamento romanesco e palpitante.
Grande parte do mistério que emana do vulto de Getúlio Vargas se esvanece, mas perdura um resíduo irredutível, enigmático, desse homem sobre o qual se disse que podia “tirar as meias sem descalçar os sapatos” e que preconizava, estranhamente, que “na luta, vencer é adaptar-se”.
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[Otavio Frias Filho é diretor de Redação da Folha de S.Paulo, escreveu Queda Livre (Companhia das Letras) e Seleção Natural (Publifolha)]
Fonte:Observatoriodaimprensa
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