segunda-feira, 4 de março de 2013

A fortuna e a virtù do secretário de Florença


Entre as inúmeras disputas envolvendo as famílias Médici e Pazzi, o atentado durante uma missa dominical contra dois proeminentes jovens da primeira linhagem deixou cicatrizes profundas em Florença. Frustrado o ataque, os Médici consolidariam o poder, eliminando seus principais rivais.
Anos mais tarde, em 1494, a entrada de Carlos VIII da França pelos portões da cidade expulsou os governantes e forçou uma reforma nas instituições políticas. O fim do principado e o início da república foi a marca distintiva do frei dominicano e agora líder do novo regime, Girolamo Savonarola (1452-1498). Por desavenças com o Vaticano, quatro anos depois, foi excomungado e incinerado em praça pública na fogueira purificadora.
Biógrafos de Nicolau Maquiavel (1469-1527) – como, por exemplo, Roberto Ridolfi eMaurizio Viroli – concordam que esses dois eventos exerceram profunda influência em seus escritos. Ainda jovem quando os fatos ocorreram, Maquiavel obteve a primeira oportunidade de emprego após o fatídico ano de 1498. No governo republicano, sob os auspícios de Piero Soderini, ocupou, na segunda chancelaria da cidade, cargo de secretário do Conselho dos Dez, responsável pela relação com outras cidades e países. A formação humanista – o conhecimento das letras clássicas e da história – teve peso, uma vez que sua família não gozava de nobreza ou prestígio suficiente para pleitear o cargo.
Maquiavel desfrutava da companhia de personagens importantes e, nos 14 anos que trabalhou para a república de Florença, participou em missões junto às mais altas fontes de poder não apenas da Itália, mas também das grandes potências europeias. Entre as suas funções, estava a de representar a república frente a outras repúblicas, príncipes, imperadores e monarcas. O ofício de diplomata o colocou em contato com as instituições dos Estados modernos e o fez atentar para a desunião de sua pátria, motivo de estar a Itália tão repartida.
Maquiavel
Maquiavel ocupou o cargo de secretário do Conselho dos Dez na república florentina, posição que lhe permitiu conviver com personagens poderosos e compreender o funcionamento das relações de força entre os Estados. (imagem: Wikimedia Commons)

Invenção fria e cruel

Nesse período, aprendeu o funcionamento das relações de força entre os Estados e a necessidade das armas complementarem as leis. E que a política é a mais fria e cruel das invenções humanas. Nessa época apareceram suas primeiras obras. A cada viagem representando seu governo, redigia compulsivamente sobre o que observava para melhor informar as instâncias superiores de Florença e para refletir consigo mesmo sobre o que se passava.
Os primeiros anos do século seguinte marcariam ainda mais sua trajetória intelectual. O encontro com César Bórgia, filho do papa Alexandre VI, conquistador de terras e audaz capitão de batalhas, parece ter lhe impressionado mais do que qualquer outra coisa. A capacidade do condottiere (comandante militar) de lidar com aliados e adversários não deixava dúvidas de que estava sempre pronto para a conquista militar, ao mesmo tempo em que exercia habilidosamente a arte política. Com a morte de seu pai, porém, o jovem Bórgia cai em desgraça e perde suas forças militares.
A centralidade da figura de César Bórgia nos escritos de Maquiavel pode ser percebida em dois dos conceitos mais conhecidos do escritor: a virtù e a fortuna. O filho do papa tinha a habilidade – virtù – de manejar o que lhe estava disponível para atingir seus fins. Mas, por um golpe de azar, a morte de seu pai, a fortuna não lhe permitiu ampliar ainda mais seus domínios. Virtù e fortuna tornar-se-iam, respectivamente, a capacidade de agir certeiramente e os desafios postos pela situação política.
As inúmeras viagens do secretário florentino pelos países vizinhos e pela própria Itália cravaram em Maquiavel a marca das paixões humanas. No diálogo ininterrupto com os escritores antigos e de seu tempo, ele percebeu que a política não possui determinantes a priori, que ela é um jogo aberto de correlações de forças.
Maquiavel percebeu que a política não possui determinantes apriori, que ela é um jogo aberto de correlações de forças
Foi justamente essa perspectiva que fez com que não reclamasse de sua situação quando, em 1512, após o retorno dos Médici ao governo da cidade, foi preso, junto com outros republicanos. Afirmou então que amava mais a sua pátria que a própria alma. Pelo favor do novo papa, obteve a liberdade e, com ela, a necessidade de se exilar.
Instalou-se na modesta propriedade rural, nos arredores de Florença, que sobrara de herança da família. Ali, passava os dias entre tabernas e jogos de azar, com o constante receio de ser definitivamente esquecido.
Em carta de 1513 enviada ao amigo Francesco Vettori, revela a composição de um “pequeno opúsculo”, O príncipe. Os meses subsequentes seriam inteiramente dedicados a este e a outro texto, de maior fôlego teórico, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Ao comentar a grande obra do historiador romano, ele pôde apresentar os aspectos republicanos de sua reflexão. As duas obras, em conjunto, conformam o sumo de seu pensamento político.
Entre conversas com os “homens brutos” do campo e os letrados da casa de Bernardo Rucellai, aristocrata de tendências humanistas e republicanas, Maquiavel fez de seu ostracismo um modo de se inserir na política quando fora do governo. Em seguida, surgiram as obras teatrais, históricas e militares. Entre elas, a História de Florença, em que narra os conflitos militares e políticos de sua cidade desde a ocupação romana na antiguidade.
Florença
Maquiavel trabalhou 14 anos para a república de Florença, em missões diplomáticas, e chegou a escrever uma história de sua cidade. A Ilustração é de Hartmann Schedel (1440-1514), autor da 'Crônica de Nuremberg'.

Apenas em 1525 conseguiu se reaproximar de Florença, ainda governada pelos Médici, mas, já fatigado pela idade, não conseguiu restabelecer suas funções diplomáticas. Possivelmente bastante amargurado, mas mantendo o peculiar humor irônico, Maquiavel morreu em 21 de junho de 1527, deixando uma vida desafortunada e uma obra de virtù.

Fonte:Cienciahoje

Um comentário:

O principe disse...

Grande livro, fundamental para quem se interessa por política ou relações humanas!