Foi no final do Outono de 1513, portanto há 500 anos,
que um homem de nome Nicolau Maquiavel, confinado, por razões políticas, ao
espaço limitado da sua quinta em Sant'Andrea, publicou um pequeno livro
intitulado ‘O Príncipe’, que viria a transformar-se num clássico absoluto da
filosofia política.
Diz-se que uma das
preocupações de Maquiavel era fazer chegar um exemplar autografado do livro a
Erasmo de Roterdão, que se encontrava doente e mesmo no final da vida. Tanto
quanto se sabe, o livro não che-gou a tempo às mãos do grande humanista que
sonhava com uma Europa unida, sem guerra e sem querelas religiosas que a
poderiam levar a um irreversível colapso.
Maquiavel representava o
pensamento pragmático e instrumental de quem usa com destreza e engenho os
instrumentos que perpetuam o exercício do poder. Erasmo tinha uma visão mais
utópica, embora, conhecendo como conhecia a Antiguidade greco-latina, soubesse
que o pensamento de um homem como Maquiavel, que desconhecia como teórico e
quadro político, já muitas vezes fora antes posto em prática, embora de forma
não sistematizada em tratado de ciência política.
O que verdadeiramente contava
e conta no pensamento de Maquiavel é o êxito dos resultados na hora de se
avaliar o cumprimento dos objectivos, ainda que isso leve os fins a legitimarem
todos os meios. Erasmo pensava de modo diferente.
Ao longo dos séculos que
entretanto passaram, o autor deste texto de cerca de 30 mil palavras, também
autor de uma peça de teatro intitulada ‘A Mandrágora’ e de outros livros, foi
visto como uma personificação do mal e deu mesmo origem a um adjectivo que
muito penaliza quem com ele é presenteado. Defendia Maquiavel que, em política,
é preferível ser temido a ser amado, e essa passou a ser a perspectiva dos
detentores do poder absoluto, dos autocratas e dos ditadores, de Salazar e
Franco a Adolf Hitler. Também Napoleão Bonaparte foi grande admirador de
Maquiavel, tendo mesmo publicado uma edição anotada de ‘O Príncipe’.
Altos dignitários da Igreja
chegaram a escrever que o livro de Nicolau Maquiavel fora escrito pela mão
de Satanás. E porquê? Porque o conceito de moralidade está ausente do
pensamento do teórico florentino, para quem era claro que um homem esquece mais
depressa a morte do pai do que a perda do património. Nesse sentido, ‘O
Príncipe’ é um tratado sobre o cinismo e o pragmatismo da política.
É interessante constatar que
esta efeméride passou praticamente despercebida, designadamente na Itália onde
Maquiavel nasceu e onde a vida política se transformou num imenso circo onde
pontificam palhaços, comediantes de feira e outras figuras que tornam aberrante
o jogo democrático, sobretudo se o deixam refém de populismos, demagogias e
absolutas faltas de respeito pelo interesse colectivo.
Por outro lado, poderá
dizer-se que a Europa da União, no difícil equilíbrio entre países ricos e
pobres, poderosos e fracos, representa cada vez a concretização prática do
pensamento de Maquiavel e não de Erasmo, porque permite que, sem escrúpulos ou
reservas morais, se condenem à marginalização e ao empobrecimento aqueles que
não cabem nos conceitos de solidariedade e entreajuda que cada vez menos valor
e significado têm entre Estados que cobiçam e condicionam a soberania dos
outros.
Se Maquiavel ainda fizesse
parte do número dos vivos não teria dificuldade em ser festejado, celebrado e
contratado como consultor e assessor, embora tudo me leve a crer que nunca
chegaria tão longe como os aberrantes teóricos do ultraliberalismo. Ele tinha
outra dimensão e grandeza.
Entretanto, proliferam os
políticos transformados em comentadores televisivos que ainda não perceberam
que, em regra, Maquiavel nunca consegue tornar-se Príncipe, mesmo que todas as
semanas entre nas nossas casas, anos a fio.
A verdade é que Nicolau
Maquiavel escreveu noutra época e com base noutros conceitos, regras e visões
do poder. Mas o que continua a ter de mais actual e interessante é a forma como
sintetizou aquilo que mais profundamente caracteriza a natureza humana quando é
poder, a sua conquista e manutenção que estão em causa.
Fonte:Correiodominho
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