Há uma vertente cômica que se apoia na evidência, naquilo que todo mundo já sabe, mas gosta de ouvir mais uma vez para sentir-se mais seguro, para compartilhar por meio da representação a certeza de alguma coisa. Foi imenso o esforço do pensamento e da prática científica do século passado para combater as restrições impostas pela civilização à liberdade amorosa e sexual da espécie humana e, embora no plano concreto ainda haja muito por fazer, o enunciado libertário é uma constante no diálogo cotidiano e nos meios de comunicação de massa. Hoje quase não há quem não saiba que afeto e sexualidade se entrelaçam e esse truísmo reconhecido há pouco pela cultura laica ocidental empresta à satisfação do corpo o revestimento digno da felicidade corporal.
Leonardo Soares/AE
Afeto e sexualidade. Peça do canadense Galluccio põe foco em família tradicional de origem italiana cujo filho se revela gay
A singela alegria de brincar com a liberdade relativamente nova e rememorar os percalços da repressão ainda vividos e doloridos na memória formam o lado mais simpático de Mambo Italiano, peça do autor canadense Steve Galluccio. Um adulto de ascendência italiana que resolve comunicar aos velhos pais a homossexualidade e a união estável com um rapaz da vizinhança e da mesma origem étnica é o ponto de partida para explorar o conservadorismo das organizações familiares tradicionais. Vergonha e escândalo nas famílias, agitação e apaziguamento resignado ao final são os componentes usuais dessa vertente cômica.
É também uma característica da comédia que deseja ser popular não enfiar a mão em cumbuca. Se o enunciado da liberdade sexual é garantia de alguns direitos no plano institucional, o meio de cultura das interdições e de tabus quase invencíveis é a família patriarcal - seja ela de origem latina ou anglo- saxônica. Esta, sim, fincada na propriedade, é aliada natural do pensamento conservador porque depende da transmissão de valores para ampliar e, pelo menos no plano ideal, perpetuar as posses. É, enfim, a família a mais temível adversária dos comportamentos amorosos e sexuais divergentes e a comédia clássica, desde Maquiavel, reconhece essa potência e analisa-a criticamente.
Sobre o tema família, contudo, a peça de Galluccio resvala com a leveza calculada por autores despretensiosos. Os pais de origem italiana da peça são escandalosos a ponto de propiciar uma máscara cômica convencional, mas estão legitimados pelo afeto igualmente escandaloso que dedicam aos seus rebentos. Em um passado remoto, para a própria geração foram efetivamente inclementes com seus preconceitos e exagerados no autoritarismo protetor, mas, no contexto da trama, são capazes de virar a mesa.
Além de aceitar a homossexualidade do filho, incluem na crise renovadora o reconhecimento dos erros do passado. Enfim, as boas intenções superam no presente os preconceitos e o hábito de imobilizar os rebentos adultos com a excessiva proteção do lar paterno.
Não há no texto matéria densa suficiente para alimentar pretensões criativas e o espetáculo dirigido por Clarisse Abujamra trata com simplicidade e clareza a articulação das cenas dispostas em espaços simultâneos e situadas em tempos diferentes. Mesmo fora de cena, os intérpretes continuam visíveis e esse recurso do teatro narrativo é, neste caso, um modo agradável de eliminar as falsas saídas em uma comédia que não tem a intenção de ser realista.
Exuberância. As personagens igualmente simples nas motivações e na expressão dialógica também não são um grande desafio para os intérpretes e o bom elenco reunido para o espetáculo toma um certo cuidado para não ultrapassar a modesta estatura das personagens e situações. Apenas a primeira cena tem um volume maior do que o necessário para indicar a exuberância dos recursos vocais dos italianos, imitando talvez a intensidade das aberturas operísticas. Logo em seguida, o espetáculo abaixa o tom e segue a trilhazinha segura desse tipo de teatro cujo objetivo, parece, não é apenas divertir, mas reafirmar com certo otimismo a solidez de uma nova moral sexual.
Ariano Suassuna tem o hábito de protestar publicamente e de modo quase furioso contra a emulação fantasiosa ou incompetente do sotaque nordestino. Não só isso. Como nativo da Paraíba e morador de Recife, revolta-se contra as deturpações da sonoridade, da sintaxe e do vocabulário do "dialeto" nordestino. Pois nós, paulistanos, versados no cantarolar que se espraia da zona leste da cidade, deveríamos reivindicar esse patrimônio imaterial e denunciar a ilegitimidade das contrafações inspiradas, ao que parece, no modo como os atores do cinema norte-americano representam mafiosos.
Fonte:estadao
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