terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Lula e a psiquiatria

No imaginário sobre o Estado, a prudência aparece com a alegoria das três faces: a do ancião, a do homem maduro e a de um jovem. Presente, passado e porvir são unidos para o domínio do instante oportuno, o kayrós grego. Os feitos dos legisladores ou governantes devem ser definidos com meticulosa sapiência, mas executados na hora exata. Um minuto antes, ou depois, a medida salutar transforma-se em crime contra a sociedade. A obra de Maquiavel se alicerça na prudência: o que foi dito, se negado pela mesma pessoa, joga ilegitimidade sobre o seu poder.
O site WikiLeaks atualiza a lógica que norteia a máquina do Estado. A guerra entre imprensa e poder existe desde o século 17. As duas frentes - a oficial e a crítica - usam armas perigosas. É o caso da propaganda que gera o culto dos governantes. Quanto maior a censura estatal, mais eficientes as técnicas de manipulação popular. O poder moderno fundamenta-se no binômio de segredo e propaganda. A censura garante o primeiro e os escritores venais aprimoram a segunda (*).
Norberto Bobbio mostra o quanto é antigo o disfarce político. "Que o poder tenda a usar máscara para não ser reconhecido e agir longe de olhares indiscretos, é uma velha história. Tal velha história tem mesmo um nome célebre que, somente com sua pronúncia, dá calafrios na espinha: "arcana imperii". Em análise magistral, escreveu Elias Canetti: "O segredo está no mais íntimo núcleo do poder" (Massa e Poder). Os fundadores da democracia pretenderam dar vida à forma de governo sem máscara, na qual os segredos do domínio fossem abolidos definitivamente e destruído aquele "núcleo interior"." Da tese extrai Bobbio o corolário ignorado no Brasil pelos que controlam o Estado: "O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia mais ou menos gravemente nos seus órgãos vitais, extermina-a." Entre os "órgãos vitais" da alma democrática encontra-se a liberdade de pensamento e de expressão (**).
Em dias recentes, o sr. Luiz Inácio da Silva retomou uma faceta de sua figura pública, o vezo autoritário de esconder práticas políticas usando, para tal fim, ataques à imprensa. Recordo um fato da sua campanha vitoriosa de 2002.
A Folha de S.Paulo realizou debate com ele, quando perguntei: "Governos eleitos na América do Sul enfrentam pesadas críticas da imprensa (...), isso ocasiona choques que chegam a ameaçar a estabilidade institucional, como no caso da Venezuela. Qual será a sua política para a mídia internacional e brasileira, como pretende Vossa Senhoria se relacionar com os formadores de opinião?"
O candidato afirmou ser "preciso acertar na política, ou seja, esse negócio de o presidente da República ficar dizendo que não conversa com A, com B, não cabe ao presidente da República (...), ele é presidente de todos." Disse mais: "Ou você estabelece uma negociação com a sociedade, com os empresários, mesmo com aqueles que são mais duros contra você, com os donos dos canais de televisão, com os donos dos jornais, para que se estabeleça a possibilidade de governar este país (...). Eu sou tão negociador que em 1975, quando Petrônio Portella disse "vai começar o processo de negociação", me chamou, tinha muita gente que dizia: Lula, não vá. Eu falei: eu vou. Por que você vai? Porque eu tenho o que dizer. Eu fui lá. Então a minha vida inteira só fiz isso, (...) fazer acordos, fazer negociações (...)". Mesmo com certo general houve acordo: "Fui lá, conversei três horas com ele e cumpri o que ele disse para mim. Fiquei no sindicato e o Exército não se meteu nas nossas greves. Depois, então, veio o Miltinho e botou o Exército para bater na gente." E Lula defendeu o diálogo com jornalistas: "Até porque se o cara não quiser conversar comigo eu vou em cima dele para conversar." A matéria, na íntegra, pode ser lida em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u35797.shtml.
Ao ser perguntado, na semana passada, sobre o apoio que recebe da oligarquia Sarney, que exigiu (e obteve) a censura deste jornal, Lula foi "em cima" do repórter: "Pergunta preconceituosa como esta é grave para quem está há oito anos cobrindo Brasília. Demonstra que você não evoluiu nada. O presidente Sarney é presidente do Senado... Preconceito é uma doença. O Senado é uma instituição autônoma diante do Poder Executivo, da mesma forma, o Poder Judiciário. O Sarney colaborou muito para a institucionalidade. E ademais é o seguinte: o Sarney foi eleito pelo Amapá, eu não sei por que o preconceito. Você tem de se tratar, quem sabe fazer uma psicanálise para diminuir o preconceito."
A conveniência política que rende segredo e censura em favor de quem o apoia se justifica, segundo o presidente, pela "institucionalidade". Tragicômica e nada original razão de Estado. Hospícios para intelectuais independentes e jornalistas surgiram no século 19. Hölderlin foi internado por suas posições jacobinas, acusado de loucura. Depois dele, o tratamento psiquiátrico foi a solução contra a crítica na Alemanha, na Itália e na União Soviética. O silêncio sobre tais medidas durou o tempo em que a propaganda enganou as massas, gerando a "popularidade" dos governantes. Mas os "loucos" venceram. Caíram as paredes dos manicômios totalitários com o Muro. O pêndulo, hoje, retorna ao poder e à propaganda. Devemos agradecer ao WikiLeaks.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Wikileaks: “O feiticeiro ficou preso à sua descoberta” - José Medeiros Ferreira

As revelações do 'site' Wikileaks sugerem que o “feiticeiro ficou preso à sua descoberta” e a necessidade de “novas formas de segurança” para as comunicações dos Estados, disse em entrevista à Lusa José Medeiros Ferreira.

“Foi o feiticeiro que ficou preso à sua descoberta. Os Estados vão ter que encontrar novas formas de segurança para as suas comunicações, por levianamente terem despejado tudo num ciberespaço com crianças que descobriram o brinquedo”, afirmou o professor universitário, 68 anos, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros (1976-1978) e especialista em assuntos internacionais.

O impacto dos telegramas diplomáticos divulgados pelo 'site' de Julian Assange, que se encontra detido em Londres, são comparados pelo antigo chefe da diplomacia portuguesa ao efeito que produziu a edição de “O Príncipe” de Nicolau Maquiavel na Europa do início do século XVI.

“Quando ‘O Príncipe’ foi editado muita gente ficou a saber como pensavam os decisores políticos. Agora, ou mudam o pensamento político ou mudam o sistema de comunicações. Mas do ponto de vista dos costumes diplomáticos acho que as coisas vão continuar mais ou menos como estão. Os meios de comunicação é que vão ser outros”, assevera.

Para Medeiros Ferreira, “também se condenou Maquiavel por ter dito quais eram as regras que os príncipes utilizavam na forma de fazer política… Agora vai condenar-se e depois vão modificar-se algumas coisas, a principal das quais será o sistema de comunicação interna das embaixadas e dos governos”.
“Será sobretudo alterada a maneira de comunicar, de informar os respetivos governos. Acho que acabou a lua-de-mel da comunicação através da Internet, que em termos públicos tem cerca de 30 anos. Isto é por ciclos, e agora os Estados têm de arranjar outras formas de comunicação, a velha cifra, descobertas antigas…”.

Apesar de as comunicações “via ciberespaço” terem deixado de ser “fiáveis” para os Estados, Medeiros Ferreira considera que as questões colocadas pelo Wikileaks terão prevenido uma eventual “guerra cibernáutica em que todos os Estados ficassem cegos, sem acesso à Internet”, antes de colocar uma hipótese: “Sabe-se lá se não voltaremos a ter o Diário da República impresso'.

Ao referir-se à polémica em torno dos “voos secretos da CIA”, o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros não se mostra particularmente surpreendido.

“Disse no meu blog [Córtex Frontal] que sobre as questões dos voos, de Guantanamo, acabaria por se saber tudo através da documentação dos Estados Unidos. Estava longe de imaginar que fosse por este processo, mas mais cedo ou mais tarde vai saber-se quase tudo sobre os voos de Guantanamo, é sempre uma questão de tempo”.

Numa referência aos casos divulgados pelos documentos diplomáticos publicados e que envolvem Portugal, Medeiros Ferreira sustenta serem “coisas que já se sabiam, ou que se deduzia. Sinceramente, ilustra aquilo que no fundo se presumia que pudesse acontecer”.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Maquiavel e a educação: a formação do bom cidadão

José Luiz Ames
Doutor em filosofia e professor associado do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Acompanha Maquiavel a (má) fama de ser pai de uma doutrina política que carrega seu nome: "Maquiavelismo". Esta doutrina indica geralmente uma ação cínica da parte daquele que, sem qualquer escrúpulo moral, persegue unicamente os próprios interesses egoísticos e abomináveis. Por esta ótica, Maquiavel seria um diabólico especialista da trapaça, um conselheiro de tiranos que querem engrandecer a si próprios à custa do bem comum dos homens por eles governados, um inimigo da raça humana, de toda piedade e religião, o instrumento de Satanás. O que um pensador identificado com semelhantes ideias poderia ter a dizer sobre educação?

Talvez seja preciso começar desfazendo esta má-fama que acompanha o nome de Maquiavel. É o caminho que seguiram muitos intérpretes. Didática e esquematicamente podemos dividi-los em dois grupos principais: de um lado aqueles que recusam a acusação por ver no florentino o autor de uma moral política severa para com a conduta política; de outro os que excluem de seu pensamento toda referência moral. Como exemplo da primeira perspectiva podemos citar a obra de Leonard von Muralt; da segunda, o trabalho de Ernst Cassirer.

Segundo Leonard von Muralt (1945, p. 67-81), Maquiavel é o adversário mais declarado do maquiavelismo. Segundo ele, não apenas seria um equívoco chamar Maquiavel de pai da mentira, como o florentino desaconselharia abertamente a mentir, porque não ignoraria que a honestidade é a melhor diplomacia. Maquiavel de forma alguma poderia ser tido como defensor da tirania, pois acolheria como forma de governo ideal a república fundada sobre a justiça, defendida por um exército constituído pelos próprios cidadãos e regida pela lei. Ainda segundo von Muralt, Maquiavel não compartilharia uma ideia de virtù como pura concentração de força e astúcia, mas a subordinaria à bontà , à honestidade do cidadão. Igualmente, Maquiavel não desprezaria a religião, particularmente o cristianismo, pois a defenderia como componente imprescindível do Estado. Estaria longe de todo historicismo e relativismo moral, pois partilharia a ideia da existência de uma escala absoluta de valores. Enfim, o Estado desejado por Maquiavel seria um rechte Staat: uma república livre, igualitária e pacífica.

No extremo oposto dos defensores de Maquiavel contra a acusação de maquiavelismo estão aqueles que opõem ao destruidor da ética o técnico da ação, alguém que concebe a política como uma atividade situada fora do domínio da moral, "acima do bem e do mal". Ernst Cassirer é, talvez, o mais conhecido dos defensores da tese de que Maquiavel é um técnico frio sem compromissos éticos ou políticos, um analista político objetivo, um cientista moralmente neutro e desinteressado quanto ao uso de suas descobertas "técnicas", que podem servir tanto a libertadores quanto a déspotas.1 Para Cassirer, a atividade política se ajustaria tanto ao Estado legal quanto ao ilegal, não sendo imoral, nem moral. Ele simplesmente ofereceria a todos os soberanos, reais ou virtuais, legítimos ou ilegítimos, conselhos eficazes para estabelecer e manter o seu poder, para evitar as discórdias internas, para prevenir ou para triunfar sobre as conspirações. Maquiavel é apresentado como o profeta da técnica em política, o mestre do realismo amoral. O campo de preocupação de Maquiavel não seria a política em sentido normativo, e sim esta atividade humana no sentido puramente descritivo, de modo semelhante a um cientista social que descreve como funcionam de fato as realidades políticas. Indignar-se diante dos meios indicados para a fundação e conservação de Estados enunciados por Maquiavel estaria tão fora de lugar como repreender um físico que enuncia o valor de uma constante.

O quadro deixa perceber que a interpretação de Maquiavel como "maquiavélico" está longe de ser uma evidência. Tanto os que afastam sua obra de quaisquer preocupações éticas como os que a interpretam a partir desta chave destituem de legitimidade a leitura do maquiavelismo. Às duas correntes extremas poderíamos acrescentar ainda aquela que, em lugar de ler Maquiavel por estes registros, o liga às fontes do republicanismo clássico: um pensador que defende a subordinação dos interesses particulares ao bem púbico; que combate a tirania; que alimenta o desejo de atingir a glória e a honra para si e para a pátria. Entre os inúmeros intérpretes contemporâneos do chamado "republicanismo neo-romano", podemos destacar Quentin Skinner (1996).

Uma vez afastado o "fantasma" do maquiavelismo do coração do pensamento de Maquiavel, resta possível considerar pertinente que o florentino possa ter algo a dizer sobre educação. Por certo é uma perspectiva muito singular que nada tem em comum com uma "teoria pedagógica" à semelhança do que foi comum a outros pensadores do mesmo período influenciados pelo Renascimento. Uma constatação inicial, frustrante, é a quase completa ausência de publicações dedicadas especificamente ao tema. No máximo encontramos abordagens que tangenciam a questão, focadas particularmente na importância da educação cívica para a constituição de um Estado estável, como é o caso de Skinner.

A escassez de estudos dedicados diretamente ao tema da educação em Maquiavel talvez deva ser tributada ao próprio autor: o termo educazione está ausente de dois trabalhos célebres, O Príncipe e Histórias florentinas. Já nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio ela ocorre nove vezes, uma vez em Da arte da guerra e uma vez em Os Capítulos - Da Ambição. No presente estudo faremos uma análise destas onze ocorrências do termo na sua obra.

Levando em consideração o conjunto de suas referências à educação, seria possível identificar algo que pudesse ser uma "ideia diretriz"? Parece- nos que o sentido real do termo educazione é captado a partir do princípio essencial da visão maquiaveliana de que a totalidade das coisas, naturais e humanas, é atravessada por um movimento incessante: "estando as coisas humanas sempre em movimento, ou sobem ou descem" (Discursos Introdução, II).2 Para o florentino, os homens e as coisas são instáveis, o desejo não deixa nada em repouso. Cabe, pois, um breve exame deste aspecto.

Para Maquiavel, o homem é determinado, fundamentalmente, pelo dinamismo da necessidade natural do desejo que o impulsiona incansavelmente e sem qualquer controle interno. A característica essencial do desejo humano é sua imoderação e desmedida. O homem é insaciável, seu desejo se dirige a tudo e sem qualquer controle interno. Em duas passagens, e praticamente com as mesmas palavras, Maquiavel expressa esta ideia: "sendo os apetites humanos insaciáveis, porque tendo por natureza o poder e a vontade de desejar qualquer coisa e por fortuna o poder de conseguir delas pouco, resulta continuamente um descontentamento no espírito humano, e um tédio das coisas que se possuem" (Discursos II, Introdução).3

O desejo se mostra, assim, a mola propulsora de todas as ações humanas. Não há desejo que não seja ativo e não há ação que não seja desejada. Mesmo quando o homem parece estar agindo contra seu desejo como, por exemplo, quando entrega um bem sob ameaça, ainda assim é por um desejo que age: o desejo de preservar sua vida, que se impõe ao desejo de conservar seus bens.

O desejo, considerado em si mesmo, é potência presente. É sempre num agora e aqui que o homem deseja. Maquiavel aponta para a ambivalência inerente à própria estrutura do desejo: ele é potência, mas limitada; ou seja, "a natureza criou os homens de maneira que podem desejar qualquer coisa, mas não podem conseguir qualquer coisa" (Discursos I, 37). Desejamos tudo, porque não somos tudo, não somos Deus. Sempre nos falta algo. Assim, o desejo, como força finita, é vivido como carência infinita. Ele nada mais é do que a afirmação de uma força em seu esforço sem fim para durar e aumentar.

O desejo é sempre particular. É sempre um sujeito individual que deseja algo para si. É, pois, singular e tem em vista o interesse próprio. É devido a esta característica que o desejo opõe os homens entre si. Quer dizer, pelo fato de o desejo ser singular, ao satisfazê-lo se contrapõe ao desejo do outro. Assim, os homens se opõem entre si não porque são malvados, mas porque são rivais na consumação de seus desejos.

Além do fato do desejo, que coloca todas as coisas em contínuo movimento, notadamente aquelas que dependem da vontade humana, deve-se ter em conta que todos os corpos cumprem um ciclo vital que é determinado pela própria natureza. O ciclo vital da natureza é marcado pelas etapas pelas quais todo ser vivo passa: nascimento, desenvolvimento e morte. É assim na natureza vegetal e animal (corpos simples), mas é também do mesmo modo nos Estados e religiões (corpos mistos). Ambos, corpos simples e mistos, são regulados pelos mesmos fenômenos de saúde e doença. A "natureza" do corpo misto é semelhante a do corpo simples. "Natureza" para Maquiavel é princípio de movimento que emerge do fundo de cada ser: "a natureza, como os corpos simples, quando acumularam muita matéria supérflua, se move muitas vezes por si mesma e se purga dela, o que lhes devolve a saúde; [o mesmo sucede] neste corpo misto da geração humana" (Discursos II,5). A natureza como princípio do movimento entendido como variação é para Maquiavel uma verdadeira lei objetiva, "lei natural". Lei natural é "o curso das coisas ordenadas pelos céus" (Discursos III,1). O termo final necessário do curso das coisas é a degeneração: "nada é mais certo do que o fato de que todas as coisas do mundo têm um final" (Discursos III,1).

Temos, pois, duas ordens de movimento: aquele que emerge do desejo e o que brota da natureza. Ambos, caso se permita que sigam livremente o curso que lhes é próprio, levam à desordem: o desejo, não submetido ao controle da lei, causa a anarquia e a dissolução do vivere civile; a natureza, que segue um movimento "por necessidade", culmina na degradação definitiva de toda ordem visível.

A educação é pensada por Maquiavel como uma força destinada a controlar a desordem inerente ao movimento tanto do desejo quanto da natureza. Evidentemente, a educação não é capaz de conter o movimento. Afinal de contas, tanto o desejo quanto a natureza são propulsores de um movimento "necessário", quer dizer, inerente às coisas. Apesar disso, pode "ordená-lo" impedindo os efeitos deletérios à vida política. Graças à educação, o homem é capaz de conhecer a "natureza das coisas", isto é, saber o que as coisas são "desde sempre". Bem entendido, este conhecimento não é, para Maquiavel, uma descoberta da "essência" metafísica das coisas, e sim um saber sobre aquilo que há de permanente e regular no modo como elas ocorrem. Entendendo o movimento das coisas, o sujeito torna-se capaz de se antecipar ao "curso das coisas ordenado pelos céus". Significa dizer, pela educação o homem será capaz de manejar a realidade com maior facilidade para controlá-la e dirigir seus esforços no sentido de obter êxito. Por fim, a educação possibilita moldar o comportamento dos indivíduos de tal modo que o curso das coisas se redirecione para uma ordem coerente com o bem coletivo. Na sequência faremos um exame das passagens nas quais Maquiavel refere-se à educação para mostrar como ela promove esse conhecimento.

Comecemos pelos Discursos, obra na qual Maquiavel menciona o maior número de vezes a educazione. A primeira referência pode ser encontrada já na Introdução ao Livro I. Lamentado a negligência dos contemporâneos de servir-se das lições da história para a condução política, diz estar convencido de que a causa dessa falha

[...] procede menos da fraqueza (debolezza) à qual a educazione atual conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio causou às muitas províncias e cidades cristãs, do que não haver um verdadeiro conhecimento da história e de não extrair dela, ao lê-la, seu sentido, nem experimentar do sabor que encerra. (Discursos I, Introdução)

Fica evidente a intenção de contrapor a uma leitura meramente contemplativa uma interpretação ativa e utilitária, a qual visa extrair lições do passado para aplicá-las ao presente e futuro, convertendo a história em instrumento de educação. Se os homens de Estado não se utilizam da história como mestra da vida, isso não se deve tanto a uma fraqueza da educação do que ao fato de enxergar na história nada mais do que um conjunto de fábulas maravilhosas. Somente um olhar guiado pela verdade poderá desvelar o sentido do útil. A culpa maior da educação reside em outra coisa: haver conduzido o mundo atual à "fraqueza" (debolezza). Esta fraqueza está associada ao "ócio". O ócio aparece em Maquiavel em três acepções distintas: como inércia (ou preguiça) que se opõe à energia (ou virtù); como licenciosidade decorrente da ausência de controle por oposição à força disciplinadora da necessidade; como a situação que oferece um excesso de possibilidades de escolha: o ócio torna os homens mais lentos em lhes oferecer uma quantidade de alternativas. A concepção maquiaveliana do ócio revela a influência que exerceu sobre ele o humanismo renascentista, que atribui um lugar secundário à contemplação (otium) e subordinado ao ideal da vida ativa (negotium). Na avaliação de Maquiavel, o ócio degenera os costumes e corrompe a vida política: "as razões da desunião das repúblicas, na maioria das vezes, são o ócio e a paz" (Discursos II,25).

A crítica à educação como promotora da debolezza será retomada por Maquiavel em outros dois momentos, sempre utilizando o mesmo termo para se referir aos efeitos produzidos pela educação nos seus dias. Assim, referindo-se aos seus contemporâneos, afirma: "Mas a fraqueza (debolezza) dos homens de hoje, causada por sua fraca (debole) educazione e da pouca informação sobre as coisas, faz com que julguem os julgamentos dos antigos em parte desumanos, em parte impossíveis" (Discursos III, 27).

Assim como no fragmento anterior, também neste Maquiavel aborda a negligência dos contemporâneos de servir-se do ensinamento dos antigos para orientar as ações políticas. Na passagem em questão, Maquiavel discute em torno da estratégia mais adequada para a unificação de um Estado dividido por facções rivais e aponta três alternativas: exterminar os culpados; bani-los; ou fazer as pazes com eles. Mostra que, embora a segunda alternativa por vezes funcione (como no caso dos florentinos em relação à Pisa), o meio mais seguro é o primeiro. Por que, então, não é adotado presentemente pelos chefes políticos? A resposta está na passagem citada: o motivo está na debolezza dos homens e na debole educazione que faz com que eles considerem as lições dos antigos desumanas ou impossíveis.

A crítica maquiaveliana à educação dos modernos tem seu contraponto positivo no exemplo dos antigos romanos e é por esta razão que propõe a imitação destes como forma de recuperar a virtù perdida pela corrupção presente. De que "virtude" se trata? Trata-se da virtude cívica que corresponde não a uma qualidade moral do indivíduo, e sim à virtude cívica ligada à "[...] concepção clássica dos romanos que a identifica com qualidades tais como: simplicidade de costumes, moderação, coragem, patriotismo, disponibilidade a sacrificar-se pelo bem comum, etc." (PINZANI, 2006, p.97). Estas qualidades não são apropriadas ao aperfeiçoamento moral dos indivíduos, como é o caso na virtude cristã, e sim estão destinadas a formar um bom cidadão. Não formam um "homem bom", mas um "bom cidadão". Quais qualidades identificam um "bom cidadão" na concepção maquiaveliana? Em primeiro lugar, a subordinação do bem particular ao bem comum. A virtude cívica desenvolve nos homens à capacidade de servir a pátria até com a própria vida, se necessário. Em segundo lugar, à coragem: o cidadão dotado de virtude cívica não teme defender a cidade ou expandir seus domínios sempre que isso se mostra necessário para conservá-la livre. Em terceiro lugar, à religiosidade: o bom cidadão é temente a Deus o que faz com que respeite os preceitos legais como se fossem mandamentos divinos. Em quarto lugar, à repugna ao ócio: o ideal de homem está vinculado à vida ativa e produtiva e não à contemplação e meditação, como é para o pensamento medieval-cristão.

A virtude cívica está intrinsecamente vinculada à educação. Não são qualidades que o homem porta por nascimento, mas são cultivadas nele através de um processo formativo. A educação pode tanto formar homens dotados das virtudes imprescindíveis para ser um bom cidadão quanto pode fazer dele uma pessoa fraca e arrogante. De alguma maneira os homens são o que a educação fez deles. Ela molda o modo de ser dos homens:

Tornar-se insolente na boa fortuna e desprezível na má nasce do modo do teu comportamento e da educazione na qual foste criado; esta, se é fraca (debole) e vã, te torna semelhante a ela; se é oposta, te torna também de outro tipo e, tornando-te melhor conhecedor do mundo, te fará alegrar-te menos do bem e entristecer-te menos do mal. (Discursos III,31)

A maneira como o homem encara o mundo é desenvolvido por meio da educação. Maquiavel recusa todo determinismo natural ou de qualquer outro gênero. Cada um é aquilo que a educação fez dele. Ser "fraco" ou ser "forte", isto é, ser determinado e corajoso ou débil e resignado, não é uma determinação natural, mas cultural; não é uma qualidade inata, mas cultivada. O fragmento não deixa lugar a dúvidas: a educação molda o comportamento dos indivíduos incutindo neles princípios e regras de conduta que determinam o modo como enfrentam o mundo. Dependendo da educação, os homens serão capazes unicamente de seguir o curso da fortuna. Mais ainda: pode levá-los identificar a "boa fortuna" com o talento, tornando-os "insolentes" no sucesso e desprezíveis no fracasso; quer dizer: pode fazer com que os homens imaginem que o êxito momentâneo é prova de sua capacidade e não fruto do acaso. Uma educação "fraca" incute nos homens ideias "vãs". Vãs são para Maquiavel ideias que levam o homem a uma atitude resignada frente ao mundo, que elevam o ideal da contemplação em lugar da ação, que cultivam o ócio em vez da virtù.

Esse argumento encontra seu fecho em outra passagem na qual Maquiavel compara a diferença de conduta entre antigos e contemporâneos, desta vez para estabelecer a causa da presença de maior amor à liberdade nos primeiros do que nos últimos:

Pensando de onde pode provir que naqueles tempos antigos os povos fossem mais amantes da liberdade do que nestes, creio que procede da mesma causa que faz os homens de hoje serem menos fortes (manco forti), o que creio estar na diferença da nossa educazione em relação à antiga, fundada na diferença entre a nossa religião e a antiga. (Discursos II,2)

A razão de os homens de hoje serem manco forti do que os antigos está na diferente educazione de uns e outros. Novamente, a debolezza dos homens provém da forma como são educados. Se os romanos eram povos fortes e corajosos não se deve a alguma qualidade peculiar à sua constituição física. Não existem povos etnicamente superiores em força e energia do que outros. Eles se distinguem entre si unicamente através de qualidades cultivadas pela educação. A virtude pode tornar um povo grande, não o acaso (fortuna). A virtude é ensinada; a fortuna é fortuita. Consequentemente, qualquer povo que tiver o mesmo apreço que os romanos pela virtude cívica pode chegar ao ponto que eles chegaram.

No fragmento acima Maquiavel se refere explicitamente à influência da religião na determinação do comportamento dos homens. A religião dos antigos fornece um "conteúdo" essencial ao processo formativo: o amor à liberdade. A fraqueza dos modernos e a exemplaridade dos antigos têm seu fundamento na diversidade radical de suas religiões e do conteúdo delas. Significa dizer que o mundo moderno tornou-se politicamente impotente por causa da religião cristã assim como o mundo antigo havia fundado sua exemplaridade sobre as qualidades específicas da religião pagã que lhe era própria. A primeira é mestre do ócio; a segunda da virtù.

Esta ideia é explicitada logo na sequência da passagem citada, quando Maquiavel argumenta que a liturgia do paganismo, diferente do aspecto humilde e delicado da cristã, era constituída de sacrifícios sangrentos "[...] e este espetáculo, sendo terrível, modelava os homens à sua imagem." (Discursos II,2 - grifo meu). A educação forma nos indivíduos hábitos que moldam suas condutas. A liturgia cheia de atos de ferocidade cultivava nos homens o espírito de fortaleza, de luta obstinada e de apego a este mundo, atitude bem oposta à fomentada pelo cristianismo, "[...] que glorifica mais os homens contemplativos do que os ativos". Assim, enquanto o sumo bem para o cristianismo está "[...] na humildade, na abjeção e no desprezo das coisas humanas", para os antigos está "[...] na grandeza de espírito, na fortaleza do corpo e em todas as coisas capazes de tornar os homens fortíssimos." (Discursos II,2). A consequência dessa educazione para a debolezza própria ao cristianismo é esta: "se nossa religião pede que tenhas fortaleza, quer dizer que sejas capaz de suportar e não de praticar um ato forte" (Discursos II,2). Esse modo de se comportar, conclui Maquiavel, "[...] parece que tornou o mundo debole e o converteu em presa dos homens criminosos." (Discursos II, 2).

É esse ponto que Maquiavel pretende ressaltar: as religiões não são inocentes em relação à sorte dos homens neste mundo. Elas incutem ideias que são assumidas como valores absolutos e, desta maneira, determinam o destino humano. O cristianismo, acusa Maquiavel, esvaziou do seu conteúdo real a ideia de "força" espiritualizando-a. Para o paganismo, "força" significava coragem e destemor para resistir ao inimigo, para lutar em defesa da pátria, para proteger a liberdade da cidade. Para o cristianismo, "força" é uma disposição interior para resistir aos desejos de glória e de grandeza mundana.

Quando o cristianismo esvazia o sentido originário dos valores ele condena os homens a serem vítimas de facínoras que não temem usar da força real, a força física, para submetê-los e dominá-los. A educação promovida pelo cristianismo, porque estimula a resignação, piedade e a fuga do mundo, é responsável pelo triunfo da tirania sobre a liberdade, de "[...] fazer com que não existam no mundo tantas repúblicas como antigamente e, por conseguinte, não se veja nos povos tanto amor à liberdade como naquela época." (Discursos II, 2).

Além dessa sequência de passagens em que Maquiavel se refere à educação como responsável pela debolezza da Itália daquele tempo e insiste na necessidade de espelhar-se nos exemplos dos antigos para recuperar a virtù perdida, apresenta outras em que ressalta a educação como força indutora de comportamentos desejáveis. A educação é uma atividade que desenvolve a virtù levando os homens à conduta adequada em relação às finalidades últimas da existência coletiva.

Uma primeira passagem nesta perspectiva é a que encontramos no começo dos Discursos. Opondo-se aos seus contemporâneos, que criticavam os tumultos que agitavam a república romana antiga, Maquiavel defende:

Não se pode chamar de modo algum com razão desordenada uma república onde existem tantos exemplos de virtù, porque os bons exemplos nascem da boa educazione, a boa educazione das boas leis e as boas leis daqueles tumultos que muitos inconsideradamente condenam. (Discursos I,4)

Maquiavel acentua o condicionamento recíproco entre a boa educação e as boas leis. "Boas leis" devem ser entendidas em sentido amplo compreendendo também as instituições estatais. A boa educação corresponde à virtude cívica que, vimos acima, diz respeito a qualidades como a simplicidade de costumes, moderação, coragem, patriotismo, disponibilidade de sacrificar-se pela pátria. Maquiavel ressalta aqui que a lei sem a virtude cívica promovida pela boa educação não produz efeito; a virtude cívica sem boas leis, por sua vez, é privada de finalidade.

Tão importante quanto o condicionamento recíproco entre educação e lei, é a circularidade entre os quatro elementos presentes no fragmento acima: exemplos, educação, leis e tumultos. O inovador no argumento de Maquiavel é a vinculação do surgimento das leis aos tumultos. Este raciocínio, porém, não autoriza a concluir que haveria um nascimento espontâneo das instituições, que faria da ordem da lei a solução automática da desordem dos dissensos de uma vez para sempre. Pelo contrário, por um lado os tumultos somente são férteis pelo perigo que representam e, portanto, o Estado sempre corre o risco de se arruinar; por outro lado, é sempre possível que as dissensões acabem em lutas partidárias que visam unicamente os interesses de seus chefes, como em Florença (História de Florença VII, 1-2); ou então degenerem em guerra civil, como foi o caso de Roma em decorrência dos desdobramentos das discórdias em torno da Lei Agrária (Discursos I, 37). As dissensões não são, pois, sempre boas. A consequência dessa constatação é a exigência de que as leis tenham já modelado a desordem. Com esta posição Maquiavel consegue resolver o dilema com o qual o confrontavam os críticos dos tumultos romanos. Com efeito, se existe uma pura desordem antes da ordem instaurada pela lei, então esta é apenas contingente e a grandeza de Roma deve ser atribuída unicamente à fortuna. Maquiavel descarta, porém, decididamente este argumento: "Não posso negar que a fortuna e a milícia foram razões do império romano, mas também me parece que quem diz tais coisas não se apercebe de que onde há boa milícia é preciso que haja boa ordem, e raras são as vezes em que deixa de haver também boa fortuna" (Discursos I, 4). Por outro lado, Maquiavel não pode nem negar a desordem sobre a qual a ordem se apoia, nem apelar a uma ordem superior que antecederia à desordem, pois descartou a tese do primeiro legislador virtuoso, como foi Licurgo em Esparta.

A força do argumento maquiaveliano está na circularidade: os tumultos romanos não devem ser condenados como pura desordem, porque não prejudicam a virtude. Os exemplos romanos provam que a virtude nasce da boa educação, esta das boas leis que, por sua vez, se originam dos tumultos. Em outras palavras, os tumultos não engendrariam boas leis se eles mesmos já não estivessem marcados pela virtude que dispensa estas leis. A desordem permite a ordem na medida em que a ordem já sempre antecede à desordem, mas sem impedi-la.

É, pois, efetivamente um círculo que faz com que a lei, nascendo dos dissensos, seja ao mesmo tempo aquela que deve mantê-los sob vigilância, modelá-los, de sorte que permaneçam férteis; plenos desta forma de virtù que faz com que as inimizades que nascem deles produzam necessidade e não ambição. Enquanto os desejos são "coagidos pela necessidade," as inimizades permanecem sãs e culminam em leis justas. Quando, porém, se "começa a combater por ambição", prevalece o uso de meios privados no interesse de uma só pessoa, família ou facção cujo resultado final é a destruição da república.

A mesma função modeladora dos costumes é atribuída à educação em outra passagem:

No caso de homens acostumados a viver em uma cidade corrompida, onde a educazione não tenha despertado neles nenhuma virtude (bontà ), é impossível que por alguma circunstância recuem em suas decisões, e para realizar sua vontade e satisfazer a perversidade de seu espírito estariam contentes em ver a ruína da sua pátria. (Discursos III,30)

No capítulo em questão, Maquiavel trata dos prejuízos que o "vício da inveja" pode causar ao bem público. Situa a educação como remédio a esse vício na medida em que é capaz de despertar alcuna bontà na mente dos homens. Quando falta essa bontà , os homens são capazes até mesmo de se alegrar ao ver a ruína de sua pátria. Chama a atenção o fato de Maquiavel conferir à educação e não à lei a força capaz de conter a derrocada do Estado. Parece que a lei só é eficaz em um Estado no qual prevalece a virtude. Quando esta se corrompe, a lei perde a capacidade de constranger a conduta dos homens.

Para Maquiavel, o ideal de perfeição do homem se alcança quando consegue colocar o interesse público acima do privado. Como a natureza passional do homem tende ao contrário, a educação desempenha um papel fundamental no sentido de refrear os impulsos egoístas levando-o a agir pelo bem público, mesmo quando suas ações rendem glória aos outros.

Na última referência à educação presente nos Discursos, Maquiavel enfrenta a questão: como explicar a diferença entre as condutas individuais e dos grupos? Ele remete a resposta à educação:

Isto [a diferença entre as famílias] não pode provir unicamente do sangue, pois este se mistura através dos diferentes casamentos, mas é necessário que resulte da diferente educazione de uma e outra família. O que importa muito é que uma criança desde os primeiros anos comece a ouvir falar bem ou mal de uma coisa, pois necessariamente receberá disso impressões e destas extrairá regras sobre o modo de proceder durante toda a vida. (Discursos III,46)

A educação age diretamente sobre indivíduos (e não grupos). Para Pinzani (2006, p.96), "[...] obviamente Maquiavel pensa in primis nos indivíduos: é a ambição destes que deve ser contida, é o amor à pátria destes que deve ser atiçado, é o egoísmo destes que deve ser superado, é o interesse pelo bem comum destes que deve ser despertado". Contudo, alerta o intérprete, estes indivíduos não vivem isolados, mas constituem famílias e formam um povo. É como membros de grupos que apresentam características inconfundíveis que se transmitem de uma geração a outra: "parece que entre uma cidade e outra certos modos e instituições diferem, criando homens mais duros ou mais efeminados. Contudo, na mesma cidade, percebe-se que tal diferença está nas famílias, que diferem uma da outra" (Discursos III, 46). Assim, continua Maquiavel, algumas são "duras e obstinadas", outras "benignas e amantes do povo"; outras ainda "ambiciosas e inimigas da plebe".

As diferenças entre os grupos humanos (famílias e povos) são determinadas não por fatores genéticos ("de sangue"), mas pelo costume fixado através da educação. A educação forma e modela determinado conjunto de caracteres singulares que se incorporam ao modo de ser dos indivíduos que pertencem a certo agrupamento humano a ponto de se naturalizarem. Paradoxalmente, a mesma força (a educação) que modela algum agrupamento humano a ponto de parecer imutável é também aquela que possibilita romper esta cristalização. Assim, ao mesmo tempo em que tudo parece previsível, pois dá a impressão de uma determinação plena dos comportamentos humanos em virtude dos valores inculcados no indivíduo desde a mais tenra idade, constatamos igualmente que a mesma força que moldou o comportamento é capaz de transformá-lo.

Com esta constatação retornamos à questão inicial: tudo está submetido à contínua mudança. Esta é fator de desordem. A ordem brota do esforço de regulação em que a educação desempenha função decisiva. A educação molda comportamentos, fixa a conduta em um caráter que se constitui para o indivíduo em uma espécie de segunda natureza. No entanto, por mais estável que tudo pareça, a própria educação que, por assim dizer, "cristalizou" o comportamento numa direção, pode romper a estrutura fixada e colocá-la em movimento outra vez.

Na referência à educação em Da arte da guerra Maquiavel acentua igualmente esse aspecto da formação moral do qual a educação está encarregada. Descrevendo, pela boca de Fabrício, as qualidades do soldado, pondera:

Acima de tudo, deve-se atentar para os costumes e que ele [o soldado] seja honesto e dotado de pudor, caso contrário se escolhe um instrumento de escândalo e um princípio de corrupção. De fato, não é possível esperar que exista alguma virtù de algum modo louvável em um homem que creia numa educazione desonesta e tenha um espírito embrutecido. (Da Arte da Guerra, livro I)

O argumento de Maquiavel é de que os cidadãos são a defesa mais segura de um Estado. Por isso, sua crítica severa à utilização das forças mercenárias e auxiliares. A posição de Maquiavel favorável a um exército cidadão certamente não é bem interpretada se a reduzirmos à pura eficácia. Chabod, por exemplo, parece-nos que cai nesse equívoco, pois sustenta que Maquiavel não percebeu que, "[...] precisamente naqueles tempos, o mercenarismo militar supunha uma necessidade absoluta para os monarcas, dedicados a criar trabalhosamente os estados nacionais" (CHABOD, 1994, p.86). A insistência de Maquiavel na formação de um exército próprio decorre de sua concepção política: nenhum Estado alcança a grandeza sem um exército forte constituído a partir de seus cidadãos. A formação de um exército popular pode gerar nos cidadãos um conjunto virtudes essenciais à vida política: patriotismo, sentido de responsabilidade, solidariedade. Enfim, a educação para a vida militar forma no fim das contas o "bom cidadão": renúncia ao interesse próprio em favor do público, espírito de sacrifício, inclusive de morrer se necessário, moderação e cultivo de uma vida simples e sem luxo, sem ócio e costumes corrompidos.

Finalmente, a última das onze referências na obra de Maquiavel à educazione que nos falta comentar, presente no Capítulo - Da Ambição, volta o tema da força modeladora. Dessa vez, é conferida à educação uma energia capaz de suprir aquilo em que a natureza é falha:

E se alguém culpasse a natureza/ porque na Itália, tão aflita e cansada,/ não nascem pessoas tão corajosas e obstinadas,/ digo que isto não desculpa e livra/ a nossa covardia, porque a educazione pode suprir/ onde a natureza falha. (I Capitoli - Dell'Ambizione, vs 109-114)

Dentre todos os fragmentos analisados, este parece o mais expressivo em relação à capacidade modeladora da educação, inclusive em relação à natureza. Maquiavel sugere que ela tem a possibilidade de "preencher" as lacunas deixadas em aberto pela natureza. Esta última deixa de ser uma força inexorável para se transformar em matéria moldável pela educação. A natureza pode ser recriada, ao ser moldada pela educação, de acordo com as finalidades colocadas pela coletividade. Nada está definitivamente dado, sequer o que parece ser assim: a natureza.

Com esta posição, o pensador florentino dirige uma crítica severa aos seus conterrâneos, que pretendem desculpar-se pela divisão e desordem reinantes apelando a fatores que parecem incontroláveis como a natureza. O raciocínio dos conterrâneos de Maquiavel parece ser este: se a Itália está nesta situação caótica é porque foi preterida por alguma força sobrenatural em relação às demais nações fazendo com que não surjam homens "corajosos e obstinados"; a natureza foi ingrata com eles. Maquiavel, opondo-se a esta visão fatalista das coisas, faz recair toda responsabilidade sobre os próprios italianos. Nada "desculpa e livra nossa covardia": a divisão e desordem reinantes são fruto de decisões políticas equivocadas e não de uma natureza ingrata. "Coragem e obstinação" não são presentes dos céus. São frutos de uma educação para a cidadania que cultiva nos homens as virtudes imprescindíveis para a vida política. Estas qualidades não são boas em si ou porque podem ser instrumentos para o aperfeiçoamento moral dos indivíduos, mas porque fazem com que os homens sejam capazes de assumir a vida política como tarefa sua.

Podemos dizer que as virtudes cívicas cultivadas pela educação fazem de alguém um bom cidadão e não um homem bom. Um "bom cidadão", para Maquiavel, é alguém com hábitos de vida simples, coragem, patriotismo, disposição ao sacrifício pelo bem comum, etc. Um "homem bom", por sua vez, é aquele que possui um conjunto de qualidades morais em grau de excelência, tais como honestidade, senso de justiça, retidão de caráter, piedade, etc. Não há relação necessária entre as duas "bondades": é possível ser honesto, íntegro, justo, fiel e, no entanto, ser incapaz de sacrificar-se pelo bem público, de assumir os encargos públicos como tarefa sua. Se Maquiavel se interessa pelo "bom cidadão" e não pelo "homem bom" não é porque considera irrelevante o último, e sim porque, como pensador político e não teórico da moral, se preocupa com as condições de possibilidade para o estabelecimento de uma república estável e duradoura. As virtudes morais não têm valor em si, mas são relevantes na medida em que contribuem ou prejudicam a formação do bom cidadão.

Encaminhando nossa reflexão para a conclusão, podemos dizer que Maquiavel não refletiu sobre a educação na perspectiva de um "pedagogo" que oferece uma nova "teoria da educação" aos seus leitores. Escreveu numa perspectiva renascentista, que afirma o homem ativo e não o contemplativo como era a perspectiva dominante na tradição medieval-cristã. A partir de suas reflexões emerge um posicionamento que, mesmo não constituindo uma "pedagogia", oferece um conhecimento e observação dos costumes da vida social que revela uma clara ideia da educação como método próprio para assegurar a formação e o desenvolvimento físico, intelectual e moral imprescindíveis para assumir a vida política como tarefa de cada um.

Primeiramente, entende a educação como aquilo de que é permeada a matéria social. A educação é o condicionamento psicológico e moral que determina a vida humana individual e coletiva. É o conjunto de pressupostos teóricos, de juízos e convicções de toda ordem que regulam a vida dos cidadãos. Ela "forma" o cidadão ao inculcar nele a virtù cívica: o amor à pátria, a dedicação ao bem público, a subordinação do bem privado ao bem público. Está explícita aqui uma moralidade: Maquiavel condena como vício o ócio, a inveja, a ingratidão, o egoísmo e tudo aquilo que impede o homem de engajar-se na defesa da liberdade como bem coletivo. Importante frisar que estas qualidades são importantes porque contribuem para a estabilidade e permanência da república e não porque são atributos bons por expressarem a perfeição moral de um indivíduo.

Um segundo aspecto refere-se ao caráter intrinsecamente mutável de todas as coisas e a tarefa da educação na modelação do comportamento humano. A ação política, por estar inscrita no tempo, precisa "inventar" seu que fazer no instante mesmo em que se efetiva. Não existe teleologia inscrita na história. Como proceder para que este agir não seja destituído de rumo? Como é possível conhecer o "curso das coisas"? Como acertar nas decisões políticas? A condição na qual o homem de ação se encontra, no campo político, requer dele a faculdade não somente de "saber", mas de "saber prever" e, a partir destes dois "saberes", a capacidade de "saber-fazer", isto é, de estabelecer estratégias de ação voltadas ao êxito. A educação vem em socorro dessa necessidade. A história ensina que o comportamento humano é determinado por condutas que se repetem ao longo dos tempos, produzidas pelo condicionamento promovido pela educação. A educação molda o comportamento ao estimular os indivíduos a praticar valores e princípios. O estudo da história torna-se vital para conhecer esses modos de vida que se repetem, pois possibilita a previsão e a antecipação. É a razão pela qual Maquiavel insiste na necessidade da imitação dos antigos, pois neles estão modelos de conduta que se reproduzem na história e que, uma vez conhecidos, prestam-se para formular modos de ação voltados ao êxito.

Enfim, Maquiavel estabelece uma relação muito estreita entre a moralidade cívica e a vida política saudável: sem bons costumes não existem Estados solidamente instituídos. Por esta razão, quando os costumes se corrompem segue inevitavelmente a decadência política. Desta maneira, a moralidade dos cidadãos, compreendida como o cultivo das virtudes cívicas, não é um fator entre outros para a continuidade dos Estados, mas é o fator por excelência. É mais importante do que as próprias leis, pois onde falta a virtude cívica, as leis se mostram impotentes para restaurar a vida política.

Unesp, campus de Marília, Departamento de Filosofia da FFC
Revista Trans/Form/Ação

domingo, 12 de dezembro de 2010

Livro : Comentários À “primeira Década” de Tito Lívio - Maquiavel

Resumo: Em Comentários Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, Maquiavel brinda o leitor com a história de Roma, discorrendo sobre a sua política, suas divergências e seus conflitos. A obra escrita entre 1513 e 1517, cujo titulo original é Discorsi, é uma digressão sobre os dez primeiros livros do historiador romano Tito Lívio e escrita por Maquiavel quatro anos após haver concluído “O Príncipe”, o que justifica suas perceptíveis semelhanças com o primeiro.

No entanto, o que o distingue de “O Príncipe” é a análise detalhada da república, em que o autor claramente se coloca em favor desta, a apontar suas principais características observadas no decorrer da história e modos de melhorá-la, ou de ao menos mantê-la. Maquiavel não se preocupa em fundamentar afirmativas ou documentar referências. Em vez disso, identifica no passado acontecimentos ou seqüências de eventos que ilustrem e confirmem suas convicções acerca do presente, em especial a política a ser seguida pelas cidades italianas. Na verdade, discorrer sobre os livros de Tito Lívio é mostrar Roma em todos seus aspectos. "Os que estudarem o que foi o inicio de Roma, seus legisladores e a ordem pública que instituíram não se espantarão de saber que tantas virtudes tenham sido ali cultivadas durante séculos, e que aquela cidade se tenha tornado centro de imenso império".

Na seqüência do livro, Maquiavel nos aponta todos os acontecimentos que levaram à criação dos tributos romanos, do Senado, da República, enfim, do Estado Romano. Assim, pode-se considerar Maquiavel como sendo, indubitavelmente, um pensador indutivo -utiliza-se de inúmeros exemplos históricos com o fim de sustentar suas afirmações. No entanto, seu propósito não é sempre impecavelmente atingido, mesmo porque a realidade não segue regras e é, portanto, muito mais complexa do que se pode teorizar.

A obra é começada com a citação da origem das cidades, que podem estabelecer-se devido a um grupo de cidadãos juntar-se a visar maior segurança; a estrangeiros que querem assegurar o território conquistado, a estabelecer, ali, colônias; ou mesmo a fim de exaltar-se a glória do Príncipe. As repúblicas nascem com o surgimento das cidades e, assim, constituem três espécies: monarquia, aristocracia e despotismo, que podem evoluir para o despotismo, oligarquia e anarquia, respectivamente. Neste ponto, a sociedade é vista por Maquiavel de forma pessimista: ascendência e decadência, a formar um ciclo vicioso. Para Maquiavel todos os princípios corrompem-se e degeneram-se, corrigidos somente via acidente externo (fortuna) ou por sabedoria intrínseca (virtu). Conclui-se que a sua melhor forma seria o equilíbrio, a “justa medida”, segundo Aristóteles, mantido através das próprias discordâncias entre o povo e o Senado, já que estes, em conjunto, representam e lutam pelos interesses gerais do Estado.

O Estado é definido como o poder central soberano; é o monopólio do uso legítimo da força, como diria Weber. As leis são estabelecidas nas práticas virtuosas da sociedade e com o cuidado de não repetir o que não teve de êxito. Por isso, não há nada pior do que a desrespeitar. Se isso ocorrer, tornar-se clara a falha do exercício do poder de quem a corrompe. Tratando-se do Estado, tudo é válido, desde a violação de leis e costumes e tudo mais que for necessário para atingirem-se as conseqüências visadas: os fins justificam os meios. Nessa visão de poder do Estado, é clara a importância da religião como instrumento político do Estado, de modo a justificar interesses e, também, como conforto à população em busca de ideais e disposta a dar sua vida por estes. O êxito de uma república, consoante o autor, pode ser estrategicamente obtido através da sucessão dos governantes. Se se intercalar os virtuosos com os fracos, o Estado poderá manter-se. Mas, se, diferentemente, dois ruins sucederem-se, ou apenas um, mas que seja duradouro, a ruína do Estado será inevitável, já que, desse modo, o segundo governo não poderá utilizar-se dos bons frutos do governo anterior.

Destarte, cita a importância das repúblicas, já que nela os próprios cidadãos escolhem seus governantes, de modo a aumentar a chance de se ter, consecutivamente, bons governos. Com relação à política de defesa onde há pessoas e não um exército, é notada um clara incompetência por parte do soberano, pois é de sua exclusiva competência formar um exército próprio para a defesa da nação. É, também, de extrema importância saber-se a hora própria para instituir-se a ditadura, que, em ocasiões excepcionais, é necessária a fim de tomarem-se decisões rápidas, a dispensar, assim, consultar as tradicionais instituições do Estado. Contudo, ela deve-se instituir por período limitado, de modo a não se corromper e deve existir até quando o motivo o qual a fez precisar-se for eliminado. Após uma análise teórica e comparativa -em termos históricos- é colocada ainda a importância da fortuna, a qual tem contingência própria e o poder de mudar os fatos. Assim, o autor define o papel do homem na história: desafiá-la. Com base na teoria do equilíbrio, conclui-se, então, que o ideal é que se estabeleça um meio termo entre as formas de governo a serem adotadas, observando-se que a combinação das já existentes pode mostrar-se muito mais eficiente. A administração de um Estado deve adaptar-se às necessidades da população, e não as pessoas às leis.

sábado, 11 de dezembro de 2010

As armas como instrumento de ação política em Maquiavel: uma análise de 'O Príncipe'

                                      Dissertação de Mestrado
Por- Marco Antonio Facione Berbel
Resumo em português
Maquiavel procura esclarecer quais são os mecanismos que colocam em movimento as engrenagens do agir político. Nesta perspectiva, sua investigação aponta para os elementos que tornam possível promover uma ação política eficaz, sobretudo, as boas armas e as boas leis. No entanto, em O príncipe, percebe-se nitidamente que as boas armas têm mais relevância que as boas leis, uma vez que as boas armas são colocadas pelo autor como condição primordial da existência de um principado. Dessa forma, o esclarecimento das questões que envolvem as boas armas ocupa um lugar privilegiado, visto que Maquiavel identifica nelas um instrumento indispensável para a conquista, fundação, manutenção do poder do príncipe.
Texto Completo MARCO_ANTONIO_FACIONE_BERBEL.pdf (340.25 Kbytes)
Fonte:TeseUsp

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Nicolau Maquiavel: um estudo sobre a Teoria dos Humores

 Dissertação de Mestrado  
                                                           
Por Marcia Gomes Fernandes
Resumo em português
Nicolau Maquiavel foi um grande observador das ações políticas dos homens de seu tempo. Tanto quanto Secretário da República Florentina e, posteriormente em seu exílio, como um analista atento ao que ocorria na Europa pôde formular teses sobre o agir político e o comportamento do corpo social das comunidades políticas. De seus estudos emergiram ideias que possibilitaram o desdobramento do pensamento político precedente, mas o pensamento de Maquiavel promoveu inovações que marcariam a passagem do pensamento medieval para o moderno. Exemplo disso é a Teoria dos humores objeto deste estudo que defende a ocorrência de tumultos como um mal necessário para a conquista da liberdade. O instrumento necessário para que isso ocorra é a existência de boas leis, que regulem os conflitos sociais para que esses não desviem dos interesses coletivos. É na obra Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, especialmente no Livro I, que Nicolau Maquiavel analisou a temática dos Humores; sendo assim nosso estudo se deterá com mais atenção a essa obra.
Texto Completo 2010_MarciaGomesFernandes.pdf (378.58 Kbytes)

Fonte:TeseUSP

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Poder e liderança: as contribuições de Maquiavel, Gramsci, Hayek e Foucault

Por - Maria Cristina Sanches Amorim, Regina Helena Martins Perez

Resumo


Liderança é um campo amplo no universo do comportamento organizacional. Os conceitos são problemáticos, no sentido da delimitação do objeto de estudo, ainda controversa. A maior parte da literatura origina-se na psicologia social, enquanto que a teoria política é pouco explorada na construção dos conceitos. Contribuições dos autores oriundos da psicologia social, quando “traduzidas” para o grande público disseminaram o surgimento de estereótipos e fórmulas, marcados pelo viés do chamado politicamente correto e pela despolitização do tema. Objetivo: mostrar que a ciência política pode ampliar o debate, propondo o estudo das relações entre poder e liderança nas organizações. Metodologia: revisão bibliográfica multidisciplinar, compatível com o ensaio teórico. Conclusões: a ciência política permite definir liderança como exercício de poder nas organizações, contornando o problema conceitual do tema; poder não tem conotação negativa ou positiva, tais juízos respeitam as formas e objetivos do poder; exercer o poder é uma contingência da liderança.

Texto Completo: PDF/A

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Balzac e Maquiavel: Curso de História e Moral para Uso dos Ambiciosos

"O sucesso é a razão suprema de todas as ações, quaisquer que sejam elas. O fato não é pois mais nada por si mesmo, consiste inteiramente na idéia que os outros formam a seu respeito". (Honoré de Balzac)


A ambição, define o Aurélio, é o desejo veemente de alcançar aquilo que valoriza os bens materiais ou o amor-próprio (poder, glória, riqueza, posição social, etc.); exprime um desejo ardente de alcançar um objetivo de ordem superior. Na tradição judaica-cristã, a sofreguidão em possuir bens materiais ou mesmo o intenso desejo carnal pela mulher se inscreve entre os maiores pecados que o ser humano pode cometer:
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não desejarás sua mulher, seu servo, nem sua serva, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo”.(Ex. 20,17)
“Todo aquele que olha para uma mulher com desejo libidinoso já cometeu adultério”.(Mt., 5, 28)
Vivemos numa sociedade onde prevalece desejo ardoroso de consumir bens materiais e simbólicos. A todo momento somos estimulados a querer algo, possuí-lo. Os padrões sociais são balizados pela ostentação, pela indumentária, por aquilo que temos. Vivemos numa sociedade do TER, na qual o SER encontra-se asfixiado. A sociedade não perdoa a ingenuidade dos que não fazem um bom curso de ambição. Os vencedores são os que tiram as maiores notas.
O consumismo e a erotização são faces da mesma moeda. As mercadorias substituem as relações entre as pessoas: não só estas são tratadas como mercadorias – que podem, portanto, serem compradas, vendidas trocadas etc., conforme o poder econômico – como, as próprias mercadorias assumem características humanas.
Que me perdoem os cristãos antigos e novos, mas numa sociedade que excita diuturnamente seus membros a consumirem e verter erotismo, é impossível não transgredir a lei sagrada. Do jeito que vai, o anjo rebelde reivindicará uma reforma da lei ou o seu reino ficará diminuto para tantas almas cujos corpos desejam outros corpos e vêem em máquinas e outros objetos a personificação dos corpos cobiçados.
Mas, deixemos tema tão escabroso de lado e voltemos à ambição. Honoré de Balzac, em Ilusões perdidas (1978), desenvolve uma crítica corrosiva do autor de O Príncipe. Os personagens balzaquianos, o ambicioso Luciano e o maquiavélico cônego, travam um diálogo muito instrutivo. Começa o padre ensinando-nos que há sempre duas histórias: a oficial e a que se ensina ad usum Delfhini, ou seja, a mentirosa; a historia expurgada dos textos que possam confundir a mente, portanto, impróprias para o uso do filho do rei, o Delfim.
A história ensinada nas escolas, ontem como hoje, é, em geral, uma coleção de datas e fatos, que nada esclarece sobre as verdadeiras e vergonhosas causas dos acontecimentos. De que nos serve saber que Joana d’Arc existiu?, pergunta o cônego. De que nos serve conhecer os resultados das ações dos grandes homens e mulheres se não conhecermos os meios que utilizaram? Vejamos, a título de ilustração, um trecho deste elucidativo diálogo:
– Não estudou os meios pelos quais os Médicis, de simples negociantes, chegaram a grão-duques de Toscana?
– Um poeta, na França, não tem obrigação de ser um beneditino – disse Luciano.
– Pois bem, meu jovem, eles se tornaram grão-duques como Richelieu se tornou ministro. Se tivesse procurado na história as causas humanas dos acontecimentos, em vez de aprender-lhes de cor as etiquetas, o senhor obteria preceitos para a sua conduta. De que acabo de tomar ao acaso na coleção de fatos verdadeiros, resulta a seguinte lei: Não veja nos homens, e principalmente nas mulheres, senão instrumentos; mas não deixem que eles o percebam. Adore como ao próprio Deus aquele que, colocado acima do senhor, lhe pode ser útil, e não o abandone até que ele lhe tenha pago bem caro a sua servidão. No comércio do mundo, seja em suma, duro como o judeu e vil como ele: faça pelo poder o que faz ele pelo dinheiro. Mas também, preocupe-se tanto com o homem que caiu como se ele jamais tivesse existido. Sabe por que deve proceder assim?... O senhor quer dominar o mundo, não é? Pois é preciso começar por obedecer ao mundo e estudá-lo bem. Os sábios estudam os livros, os políticos estudam os homens, seus interesses, as causas geradoras dos seus interesses, as causas geradoras de suas ações. Ora, o mundo, a sociedade, os homens tomados em seu conjunto são fatalistas: eles adoram o acontecimento. Não sabe por que lhe faço esse pequeno curso de história? É que o julgo de uma ambição desmedida...
– Sim, meu padre!
Neste diálogo, o cônego balzaquiano assume-se como discípulo de Maquiavel. Neste caso, o nome do florentino adjetiva a atitude dos que pautam sua vida pela cobiça, sem preocupação com qualquer fogo sobrenatural. Luciano, o ambicioso fracassado, é criticado por ter sido humano demais, isto é, por ter deixado que seus sentimentos atrapalhassem sua ascensão, por ter sucumbido ao moralismo. Seu pecado não foi ambicionar, mas não fazê-lo com a devida intensidade.
Em Ilusões perdidas, maquiavelismo tem significação pejorativa. Como nos ensina o Aurélio, esta palavra também expressa uma atitude política desprovida de boa-fé, um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, dissimulador. Numa palavra: maquiavélico.
Balzac reafirma o mito do judeu rico e o que poderíamos denominar tipo ideal weberiano do avarento, tão bem representado pelo Pai Grandet noutra de suas obras magistrais: Eugénie de Grandet. Recordemos este autor clássico escreve no século XIX, quando o espírito burguês encanta a sociedade mercantilizando as relações humanas. Mas é diferente na atualidade?

A Moral

Não há moral. O que determina o bem e o mal é o resultado. Seja vitorioso, torne-se poderoso, rico etc.e todos os seus atos desonrosos serão esquecidos. O importante não é a prática ou o que você é, mais a imagem que fazem da sua pessoa. "Esconda o avesso da sua vida", afirma o padre, personagem balzaquiano, ao ambicioso Luciano.
Mesmo que você não se suporte diante do espelho – material e/ou da sua consciência - mostre-se belo para o exterior. Discrição: eis a palavra chave; ou como diremos nos meios políticos, a palavra-de-ordem do ambicioso. Adote-a como sua, ensina-nos o sacerdote. E, para que não fiquem dúvidas, vejamos seu argumento:
"Os grandes cometem tantas covardias como os miseráveis; mas cometem-nas na sombra e fazem ostentação das suas virtudes: permanecem grandes. Os pobres exercem suas virtudes na sombra e expõem suas misérias ao sol: são desprezados”.
Seja verdadeiro e sincero, mostre-se como você é e será ridicularizado e desprezado. Aparente ser o que você não é; atue na escuridão e não deixe que a luz seja suficiente para tornar a obscuridade do seu ser inteligível ao outro e você será respeitado, elogiado e bajulado. Tudo reside na fórmula: dissimule.
Balzac revela os desígnios ocultos em relação ao mito da moral e da virtuosidade da justiça. O que é moralmente condenável e justo? Acaso o ladrão é mais culpado do que o indivíduo que, por irresponsabilidade política e administrativa, atira na miséria dezenas e centenas de famílias? Será o governante cuja política econômica aprofunda a exclusão social e favorece os que vivem na sombra menos culpado que o ladrão que rouba um indivíduo ou uma família?
"Os juízes, condenando o ladrão, mantém a barreira entre pobres e ricos", afirma Balzac. Na verdade, os grandes roubos - como os escândalos que pipocam por este país - tendem a ser acobertados porque expressam apenas deslocamentos de fortunas. Há a privatização do dinheiro público – aliás, esta não é a palavra da moda? A estratégia é abafar um escândalo com um novo escândalo. Agora, por exemplo, o foco desloca-se do executivo para o legislativo.Transferem-se fortunas de forma lícita – dentro das normas legais - ou por maneiras ilícitas. O efeito é o mesmo: deslocamento de fortunas. As fraudes, os grandes roubos etc., não colocam a sociedade em risco. Envolve gente graúda, tubarões. Os bagrinhos têm que garantir a sobrevivência, não têm tempo e condições para se preocupar com a dilapidação do bem público. Acompanham estarrecidos. Comentam entre os seus e ironizam: por que fulano depositou dinheiro na conta de tanta gente e esqueceu de mim?! Uma minoria se organiza e tenta influir sobre a maioria para colocá-la em movimento contra este estado de coisas. Mas, não é fácil.
O modelo que prevalece é o dos que tem sucesso e... propriedades. Enriquecer! Este é o grito de guerra de todas as torcidas. Feito isso, pode-se permitir o "luxo da honra”.Só quem ousa pode atingir o topo. E ousar é saber usar os meios certos nos momentos adequados.
Maquiavel diria que o príncipe deve saber usar os vícios e as virtudes, a bondade e a maldade, a paz e a violência: é preciso ser ter a força do leão e a astúcia da raposa: saber agir como homem e como animal. O padre balzaquiano, que é maquiavélico, diz que devemos agir como o jogador: saber dissimular e esconder o jogo. O jogador que é franco é um péssimo jogador: só perderá. O exímio jogador "não somente oculta o seu jogo, mais ainda trata de dar a entender, quando está certo de ganhar, que vai perder”.O segredo é a lei suprema: é imprescindível ocultar os meios.
Os fins justificam os meios! Quanto maquiavelismo nesta frase pronunciada há séculos sem qualquer referência com o contexto histórico em que foi escrita - e, na maioria dos casos, descontextualizada em relação à totalidade da obra. Não deve nos surpreender o fato de maquiavelismo e maquiavélico terem adquirido o status de adjetivo e substantivo. O Aurélio define-os como a "política desprovida de boa-fé, procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro; velhacaria, perfídia".
Pode realmente haver boa-fé na política? A exemplo do ambicioso balzaquiano, o objetivo do político não é o sucesso? Também ele não é avaliado pelos resultados? O político deve observar a moral ou agir como o jogador?
Uma rápida leitura de O Príncipe, modelo para os ambiciosos de todo parece comprovar a analogia. Mas, de qual ambição nos fala Maquiavel: do indivíduo que almeja a riqueza ou mesmo o poder para o deleite pessoal ou aquela ambição que move os homens mais ilustres na história humana, indivíduos que almejam construir algo que transcenda a finitude da vida? No contexto do renascimento italiano, esse ente duradouro que sobrevive ao seu criador e é legado às gerações futuras, é o Estado. O objetivo de Maquiavel é o estabelecimento de um poder capaz de garantir a ordem social.
A política e a moral pertencem a domínios diferentes da práxis humana. O sujeito da política é a coletividade, a Pólis. Na esfera da ação política o que importa é a certeza, os efeitos e a fecundidade dos resultados. O criador de cidades terrenas, condutor de homens e do Estado, é julgado pelo sucesso ou fracasso e não por considerações morais cristãs. Seu lema é: fazer o que é necessário, a fim de aconteça o que se objetiva. Sua ética é a da responsabilidade - como definiria Max Weber.
O sujeito da moral é o indivíduo. Sua ética é a do dever pela convicção. A moral individual adota como preceito fazer o que deve ser feito, independente do que possa acontecer. Pouco lhe importa as conseqüências dos seus atos, os resultados: o essencial é a certeza do dever cumprido. O que vale é a pureza das intenções, o que pressupõe a coerência entre a intenção e a ação. Ages com justiça e deixa o resto nas mãos de Deus. Na esfera individual a moral cristã apresenta-se como própria do homem de fé, do sábio profeta, cujos olhos estão postos na cidade celeste. Porém, os homens não são anjos celestiais e a política, enquanto esfera de ação coletiva, é o reino terreno de interesses genuínos e espúrios.
Pode o condutor de homens e construtor do Estado pautar suas ações pela ética da convicção? Os antigos falavam em bem comum, bom governo, justiça, etc. Outros, como Thomas More, em Utopia, imaginaram sociedades onde o homem finalmente alcançaria a felicidade. Expressam uma concepção política prescritiva destituída de vínculos com a realidade nua e fria. Há muito que os reis e governantes deixaram de ser avaliados por suas virtudes e/ou vícios, mas por sua eficácia – Ricardo II, de Shakespeare, é uma bela ilustração desta forma de julgar o governante.
A política pauta-se por interesses conflituosos e antagônicos concretos e pela ação de homens de carne e osso. Sua moralidade não é a do dever pelo dever. Aquilo que é visto como imoralidade é, na verdade, uma inversão do moralismo sacrossanto: o que move a política é busca de resultados concretos e não imaginários (embora a imaginação também cumpra um papel importante, principalmente quando codificada em Ideologia).
Balzac e outros anti-maquiavélicos invertem Maquiavel: traz para a arena do privado o que foi pensado tendo como referência uma entidade superior aos indivíduos - e mesmo ao governante. A perspectiva de Maquiavel é histórica pois é balizada pela necessidade da constituição do Estado que, nas condições do seu tempo, significava a unificação da Itália. Ora, esta é uma tarefa gigantesca, acima das forças de homens normais e de quaisquer considerações de cunho moralista.
O príncipe capaz de dar cabo desta tarefa pode tudo? Ele pode usar do bem e do mal, dos vícios e das virtudes e da violência conforme considerar necessário. Contudo, há limites: não abusar dos direitos dos súditos, garantir a segurança e a estabilidade, não ser odiado pelo povo - embora seja prudente ser temido. Se o príncipe colocar suas ambições pessoais acima do Estado, poderá ficar em maus lençóis. A ambição do príncipe não é a que se reduz à mesquinhez do indivíduo privado: ele é o criador e provedor de instituições.
Se há um bem para Maquiavel, este diz respeito ao estabelecimento da ordem temporal. Maquiavel foi um ambicioso à maneira do que hoje chamamos de cidadão - construtor e mantenedor do Estado. Sua ambição maior era servir à república de Florença e contribuir para a unificação da Itália - não por acaso será reabilitado pelos italianos no século XIX. Também não é um acaso que ele tenha morrido pobre e desprezado pelos políticos da sua época.
Maquiavel era bastante pessimista quanto à natureza humana:
"Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a  penar, entre tantos que não são bons. É necessário. Portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, e cada caso, conforme necessário”.(O Príncipe, cap. XV)
Se somos ambiciosos por natureza - o homem lobo do homem, como diria Hobbes -, é preciso um poder que garanta a ordem social. Este poder é o Estado: principado ou república em Maquiavel; Leviatã em Hobbes. Num e noutro caso, a estabilidade da ordem social é mantida. Hoje, essa ordem é a dos privilégios, a que protege os campeões em ambição, a que faculta as condições para os deslocamentos das fortunas.
De qualquer forma, não culpemos Maquiavel pelos ambiciosos do nosso tempo. Pois, se como escreveu Balzac no século XIX, "a nossa sociedade não mais adora o verdadeiro Deus, mas o bezerro de ouro", ou seja, se a "política só leva em conta a propriedade", a culpa não é do florentino.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Os Ossos de Deus - Leonardo Gori



Sinopse

Qual a ligação entre Leonardo da Vinci e Nicolau Maquiavel, o autor do clássico O Príncipe? Que segredos esses gênios do Renascimento italiano poderiam esconder? Nas páginas deste Os ossos de Deus, os célebres protagonistas ganham vida e se envolvem, durante uma escavação, com a descoberta de cadáveres de quatro mouros e um gorila. Por trás do inusitado, muitas revelações sobre os caminhos da humanidade. O cuidado com a reconstituição histórica do renomado escritor Leonardo Gori faz o leitor caminhar pela região da Toscana lado a lado com Da Vinci e Maquiavel. Os ossos de Deus é um thriller como há muito não se via. Ao mesmo tempo inquietante, rico em informações verídicas e extremamente divertido.

Páginas: 288 páginas
ISBN: 9788576655480
Formato: 23 x 16 cm.
Encadernação: Tapa rústica
Selo: Planeta
Nº de Edição: 1
Publicação: Setembro 2010

Fonte:bondfaro