sexta-feira, 31 de julho de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - Acusação à tirania

Entre todos os mortais que já mereceram elogios, os mais dignos são os chefes ou fundadores de religiões. Depois vêm os fundadores de repúblicas ou de reinos. Em seguida os que, à frente de exércitos, estenderam os domínios da sua pátria. A estes devemos acrescentar os letrados; e, como destes há várias espécies, cada um alcança a glória reservada à categoria a que pertence. Enfim, no número infinito dos homens, nenhum deles deixa de receber a fração de elogio a que faz jus pela sua arte ou profissão.

Por outro lado, merecem o ódio e a infâmia os destruidores de religiões, os que permitiram que os reinos ou repúblicas confiados a seus cuidados se perdessem; os inimigos da virtude, das letras e das artes honradas e úteis à espécie humana; e assim os ímpios, os furiosos, os ignorantes, os ociosos, os covardes e os inúteis.

Não haverá ninguém tão insensato ou sábio, tão corrompido ou virtuoso, que, se lhe pedirmos para escolher entre as duas espécies de homem, não aprove a que merece ser elogiada, criticando a que merece ser detesta da. Contudo quase todos se deixam seduzir, voluntariamente ou por ignorância, pelo brilho enganoso dos que merecem o desprezo mais do que elogios, envolvidos pela atração do falso bem, ou da vã glória.

E alguns que alcançaram a honra imortal de fundar uma república ou um reino mergulham na tirania sem perceber que, ao abraçá-la, perdem renome, glória, honra, segurança, paz e satisfação espiritual, expondo-se à infâmia, às críticas, à culpa, a perigos e inquietações.

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Aquele que for elevado ao poder supremo de uma república que considere os elogios com que Roma, transformada em império, cumulou os imperadores que seguiram as leis, de preferência aos que se conduziram de modo contrário. Verá então que Tito, Nerva, Trajano, Adriano, Antonino e Marco Aurélio não tinham necessidade, para a sua defesa, de soldados pretorianos ou de grande número de legiões, porque a maneira como viviam, a afeição do povo e o amor do Senado constituíam sua melhor proteção.

Verá também que todas as forças do Oriente e do Ocidente não conseguiram salvar os Calígula, os Nero, os Vitélio, e tantos outros criminosos coroados, da vingança dos inimigos criados pelos seus costumes execráveis e pela sua ferocidade. Se a história desses monstros fosse bem-estudada, serviria de ensinamento aos príncipes, mostrando-lhes os caminhos da glória e da vergonha, da segurança e do terror. Sabe-se, com efeito, que dos 26 imperadores que reinaram, de César a Maximino, dezesseis foram assassinados, e dez morreram de morte natural. Se no número dos assassinados se incluem alguns justos, como Galba e Pertinax, é porque foram vítimas da corrupção introduzida no exército pelos seus predecessores. Por outro lado, se entre os que morreram naturalmente se encontra um malvado como Severo, isso se deve à sua grande coragem, e a uma felicidade inaudita - duas circunstâncias que poucas vezes se reúnem para beneficiar os homens.

0 estudo da história ensinará também como se pode fundar um bom governo, pois todos os imperadores que subiram ao trono por direito de nascença foram maus, com exceção de Tito; os adorados como reis foram todos excelentes, como se pode ver pelos cinco que se sucederam, de Nerva a Marco Aurélio. Que o leitor os compare com seus antecessores; e sucessores, escolhendo depois aqueles sob os quais preferiria viver como súdito.

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Que reflita, portanto, todo aquele a quem o céu vier a oferecer tão bela ocasião, sobre as duas alternativas que se abrem à sua escolha: unia que o fará viver em segurança, assegurando-lhe a glória após a morte; outra que o fará viver em constante angústia, e marcará sua memória com eterna infâmia.

Fonte: Do Livro: "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", II, 10º

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Maquiavel e a política contemporânea

Maquiavel é talvez um dos autores - como a imensa maioria dos clássicos de qualquer área - mais mal compreendidos tanto pela crítica como, principalmente, pelo senso comum. A própria significação que se dá ao termo maquiavélico revela esta incompreensão.

A principal destas imcompreensões provavelmente é a que o vincula à ação inescrupulosa e ao desejo do poder pelo Poder. Nada mais contrário a Maquiavel, ao definir que "os fins justificam os meios" - frase habitualmente utilizada fora de contexto - ele não desprezava os fins, os objetivos, mas sim os colocava em seu devido lugar: no centro de planejamento de qualquer ação política.

E quais eram os fins que Maquiavel almejava, pergunta que poucos se fazem. Em primeiro lugar ele desejava trazer para a Itália uma instituição republicana na qual a vontade do povo fosse respeitada. É bastante evidente em um texto dele - muito menos conhecido que "O Príncipe" - Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio sua vocação republicana e em certa medida democrática.

Mas mesmo nas páginas do Príncipe ele adverte ao soberano que é perigoso ser odiado pelo povo e que a um governante que não é capaz de manter-se em paz com o povo é inútil a proteção dos exércitos e fortificações. Isto se dá porque na sua compreensão de sociedade há atores múltiplos - o príncipe, os nobres, o povo - e portanto ele é capaz de perceber que sempre existirão conflitos na sociedade.

Este modelo é muito diferente dos posteriores que irão imaginar a existência de um Estado acima da sociedade - como o pensado pelo modelo liberal - ou apenas como apêndice de uma parte da sociedade - como os Marxistas. Ainda hoje parece ser um paradigma eficiente para analisar a política.

Metas realistas
Maquiavel dedica boa parte dos seus textos a avaliar que é necessário ver a política como ela é, não como ela deveria ser. Ao afirmar isto ele em momento nenhum advogou que os muitos truques - do assassinato à corrupção - analisados por ele fossem um padrão ou um ideal do que deveria ser a política - tampouco de que ela sempre haveria de ser assim. Ele apenas constatou fatos e analisou os dados presentes.

Assim a visão de Maquiavel é essencialmente estratégica: definir o objetivo, enxergar a realidade como ela é, refletir como a partir daquela realidade dada se pode chegar à situação desejada no objetivo, rever os objetivos a partir desta reflexão e, finalmente, pensar nas táticas que podem ajudar a concretizar o objetivo através de um processo gradual de metas realistas e concretas.

Além disto ele adverte de um lado para que não se perca o objetivo de vista e de outro para que nem toda tática é recomendável. A questão não é portanto linear nem são infinitas as escolhas porque algumas delas ampliam o risco admissível. Os riscos, avalia ele, às vezes devem ser corridos porque a sorte em geral favorece aos audazes, mas se deve estar conscientes deles. Mais ou menos o conceito de risco calculado da estratégia militar contemporânea.

Assim ele sabe que o Estado que ele deseja não será obtido enquanto a Itália não for unificada. Sabe que ela Não será unificada a não ser por um Príncipe forte e que este processo inevitavelmente conduzirá a guerras e violência. Sabe que esta centralização precisa se dar em torno de um nome forte porque precisará obrigatoriamente combater a aristocracia - com a qual o Estado republicano final não será possível. Daí o conteúdo até brutal em alguns momentos do Príncipe.

Síndrome de Cassandra
Curioso que Maquiavel, ao lado de dois outros grandes estrategistas - Ibn Khaldun e Karl Clausewitz - jamais tenham sido ouvidos em sua época. Maquiavel passou a vida toda tentando se fazer ouvir pelos príncipes italianos. Khaldun passou a vida fugindo de corte em corte do Magreb onde inevitavelmente caia em desgraça. Clausewitz jamais conseguiu ser levado a sério pelo Estado maior prussiano.

Tal como a personagem da mitologia grega, os três parecem ter recebido ao mesmo tempo o dom de prever o futuro e a maldição de não ser capaz de convencer ninguém das suas previsões por mais acertadas que fossem. Ainda assim Maquiavel continua hoje sendo um eficiente conselheiro, Clausewitz moldando os exércitos contemporâneos e Khaldun arrancando exclamações sobre a atualidade de seu modelo de interpretação do desenvolvimento das sociedade. Enquanto isto os contemporâneos a eles que obtiveram seus efêmeros sucessos tiveram o nome apagados da história.

Alexandre Gomes é articulista do jornal Primeira Página de São Carlos (SP)

Fonte:Resenha.sites

domingo, 26 de julho de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - O Amor a Liberdade

Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à liberdade dos povos; a experiência nos mostra que as cidades crescem em poder e em riqueza enquanto são livres. É maravilhoso, por exemplo, como cresceu a grandeza de Atenas durante os cem anos que se sucederam à ditadura de Pisístrato. Contudo mais admirável ainda é a grandeza alcançada pela república romana depois que foi libertada dos seus reis.

Compreende-se a razão disso: não é o interesse particular que faz a grandeza dos Estados; mas o interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum só é respeitado nas repúblicas: tudo o que pode trazer vantagem geral é nelas conseguido sem obstáculos. Se uma certa medida prejudica um ou outro indivíduo, são tantos os que ela favorece, que se chega sempre a fazê-la prevalecer, a despeito das resistências, devido ao pequeno número de pessoas prejudicadas.

O contrário acontece numa monarquia: com freqüência, o que o monarca faz em seu próprio interesse prejudica o Estado - e o que beneficia o Estado é nocivo aos interesses particulares do monarca. Assim, quando a tirania se levanta no meio de um povo livre, o inconveniente menor que traz é a sustação do progresso, deixando o país de crescer em poder e em riqueza; porque o normal é que, nesse caso, o Estado regrida.

Se surge por acaso um tirano dotado de alguma virtude, que com valor e capacidade militar aumenta o seu domínio, isso não traz à república qualquer vantagem: o tirano é o único beneficiado. Estará impedido de homenagear seus súditos mais sábios e corajosos, para não tê-los como inimigos; e não transformará os Estados conquistados em tributários, pois não lhe interessa fazer sua cidade mais poderosa. Para ele, só o que conta é que todas as cidades e províncias o reconheçam como mestre. Quer semear a desunião, extraindo das suas conquistas proveito para si próprio, não para a pátria

Fonte:Do Livro: "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", II, 2º

sábado, 25 de julho de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - A observância da Lei

Não observar uma lei é dar mau exemplo, sobretudo quando quem a desrespeita é o seu autor; é muito perigoso para os governantes repetir a cada dia novas ofensas à ordem pública

Ajustado o acordo, e restabelecida a antiga Constituição romana, Virgínio convocou Ápio para defender sua causa perante o povo. 0 acusado atendeu à citação cercado de nobres, e Virgínio ordenou que fosse aprisionado. Ápio pôs-se a gritar, pedindo socorro ao povo, enquanto Virgínio alegava que ele não merecia o apelo que havia abolido, nem devia ser defendido pelo povo que ofendera. Ápio respondeu que não era lícito violar a regra do apelo, que se havia restabelecido com tal empenho. Preso, matou-se antes do dia do julgamento. Embora. pelos crimes que cometeu, Ápio merecesse os castigos mais severos, não era justificável violar qualquer por sua causa, sobretudo uma que acabava de ser restaurada. Com efeito. o exemplo mais funesto que pode haver, a meu juízo, é o de criar uma lei e, não cumpri-la, sobretudo quando sua não-observância se deve àqueles que a promulgaram.

Depois de 1494, a república de Florença havia reformado seu governo sob a influência de frei Savonarola, cujos escritos dão prova de ciência. sabedoria e virtude. Entre as leis então estabelecidas para assegurar a liberdade dos cidadãos, havia uma que autorizava ao povo o apelo de todas as sentenças passadas pelo Conselho dos Oito ou pela Senhoria relativa a crimes contra o Estado. Mal confirmada essa lei, que Savonarola tinha proposto havia muito tempo, e que só com dificuldade conseguiu que fosse adotada, cinco cidadãos foram condenados pela Senhoria por atentar contra a segurança do Estado. Os acusados quiseram apelar, o que não lhes foi concedido, violando-se assim a lei. Esse episódio contribuiu, mais do que qualquer outro, para prejudicar o crédito de Savonarola. Se ele considerava o apelo uma instituição de utilidade, deveria fazer observar a lei; em caso contrário, não deveria ter feito tantos esforços para que fosse aprovada.

Esses fatos foram ainda mais marcantes porque nunca se ouviu Savonarola, nos sermões que pregou depois da violação da lei, acusar ou justificar os que a tinham violado - porque não queria desaprovar uma ação que lhe trouxera benefício mas, ao mesmo tempo, porque não podia justificar os que assim tinham agido. Com isso revelava seu caráter faccioso, e a ambição que o dominava, perdendo a reputação, e atraindo acusações gerais.

Nada mais funesto do que inflamar a cada dia, entre os cidadãos, novos ressentimentos pelos ultrajes cometidos incessantemente contra alguns destes, como acontecia em Roma depois do decenvirato. De fato, todos os decênviros, e muitos outros cidadãos, foram em várias oportunidades acusados e condenados. O temor era geral entre os nobres, que não viam o fim dessas condenações antes que se destruísse toda a sua classe. Disso teriam resultado inconvenientes dos mais desastrosos para a república se o tribuno Marco Duélio não houvesse posto termo à situação proibindo, durante um ano, citar ou acusar qualquer cidadão romano, o que fez com que os nobres recobrassem a segurança.

Esse exemplo mostra como é perigoso para uma república ou apa um príncipe manter os cidadãos em regime de terror contínuo, atingindo-os sem cessar com ultrajes e suplícios. Nada há de mais perigoso do que esse tipo de procedimento, porque os homens que temem pela própria segurança começam a tomar todas as precauções contra os perigos que os ameaçam. Depois, sua audácia cresce, e em breve nada mais pode conter sua ousadia.

Por isso, é necessário ou não atacar ninguém ou então cometer ao mesmo tempo todas as ofensas, dando garantias, em seguida, aos cidadãos, para restaurar sua confiança e a tranqüilidade geral.

Fonte: Do livro: "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", 1, 45º

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Ambiente onde foi escrito o Príncipe de Maquiavel

À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem - juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social, a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca.

Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados livres e iguais. As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tomar-se economicamente dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida dos burgos.

Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tomam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões comerciantes, enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir.

As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência diante dos barões, reis, papas e imperadores.

Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscita um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores.

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.

Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricas, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado,

Esparta, Atenas e Roma são tornadas como exemplos da liberdade republicana. imitá-las é valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana.

Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel.

Marilena Chauí (professora de Filosofia na USP e autora de vários livros)
Do livro: Filosofia, Marilena Chauí, Ed. Ática, ano 2000, SP, pág. 200-204)


sábado, 11 de julho de 2009

Maquiavel e a mulher mais feia do mundo



A carta na qual o autor de O Príncipe conta como, "cego pela carência conjugal", foi "aos finalmente" com uma dama cuja "boca parecia a de Lorenzo de Médici, mas era torta para um lado, e desse lado escorria uma baba porque, não tendo nenhum dente, ela não podia conter a saliva"

Nicolau Maquiavel era um devasso. Como o adjetivo que leva seu nome, maquiavélico, é sinônimo de duplicidade e má-fé, devasso não é uma novidade para defini-lo, mas soa como tal. Ao referendar o desequilíbrio entre moral e política na esfera pública, a amoralidade de Maquiavel não só inaugura a modernidade - ela é o coração da sua esfera íntima, de sua vida amorosa.

Viajante assíduo, por obra do trabalho diplomático, de dia Maquiavel negociava com príncipes, nobres e cortesãos. À noite, frequentava botequins e rufiões, bordéis e cortesãs. Bebia, jogava, apostava e se entregava ao que ele definiu como "Amor", com letra maiúscula. Quando não dava para se divertir, se queixava. Em carta na qual descreve o isolamento longe da sua Florença, reclama de que "não havia dormido nem brincado".

Numa dessas viagens, dormiu e brincou com uma dama a quem chamou de "borrão de visão", de "tão feia". A um amigo, numa carta, deu detalhes da peça que lhe foi pregada pela Fortuna. A aventura é tão rocambolesca e minuciosamente relatada que persistem dúvidas se os fatos se passaram do jeito que ele conta. Suspeita-se de que Maquiavel - ou Machia, como o chamavam os amigos - tenha exagerado. Mas se sabe que a carta é real, autêntica e pouquíssimo divulgada. Continua lá, nos arquivos, como um grotesco entrevero carnal na vida de um cronista dado às firulas sutis da alta política.

Quando datou assombrosa missiva pornô ao amigo Luigi Guicciardini, em 8 de dezembro de 1509, Maquiavel estava casado com Marietta di Luigi Corsini havia oito anos. Sabe-se mais de sua vida extraconjugal do que de seu casamento, apesar de Marietta tê-lo suportado até o fim da vida e lhe ter dado quatro filhos e duas filhas. Na única carta conhecida que Marietta lhe enviou, ela termina pedindo-lhe que "se lembre de voltar para casa".

O próprio Maquiavel admitiu que era mais fácil encontrá-lo fora de casa. "Quando estou em Florença fico entre a bodega de Donato del Corno e La Riccia, um me chama de 'o chato da bodega' e a outra de 'o chato da casa'", escreveu a um amigo. Del Corno era um homossexual, dono de dois bares. La Riccia - ah! La Riccia! - era uma dama de alto coturno cuja casa Maquiavel frequentava com assiduidade. Cortesã, ela atendia os "bem de vida" - seria o que hoje se chama de "garota de programa". La Riccia aparece ao menos em seis das cartas do filósofo. Maquiavel chegou a ser processado pelas autoridades florentinas por sodomizar La Riccia. Por conta de sua influência, livrou-se da acusação.

"Além de ter um gosto por prostitutas de todos os tipos, Maquiavel parece ter mantido uma amante em cada cidade para a qual viajou", escreveu o seu mais recente biógrafo, Michael White. Ele foi um amante apaixonado, caprichoso e volúvel, a despeito de ter sido, enquanto teórico e prático da política, extremamente racional.



Sua primeira amante chamava-se Jeanne e vivia na corte do rei Luis xii, da França. Ele a apelidou carinhosamente de Janna. O caso teria começado antes de ele conhecer Marietta, mas existem referências a ela nove anos depois de casado. Numa carta a Francesco Vettori, em 1514, ao falar de outra amante, Maquiavel demonstra que não economizava afetos: "Conheci uma criatura tão graciosa, tão refinada, tão nobre, tanto na sua natureza quanto na sua circunstância, que meu amor e prazer por ela nunca serão tão grandes quanto ela merece."

Sua mais querida e mais durável amante foi uma cantora (e também cortesã) famosa, Barbera Raffacani Salutati. Em sua atenção, escreveu diligentemente a um amigo romano: "Barbera está em Roma; se você puder lhe prestar algum serviço, eu recomendo, porque ela me preocupa mais do que o imperador." Gostava tanto de Barbera que escreveu duas peças de teatro especialmente para ela: A Mandrágora e Clizia. Barbera era uma celebridade. E como cantava nos intervalos entre os atos, acabou dando certa notoriedade a Maquiavel - cuja fama póstuma é oceanicamente superior à que teve em vida.

Nas peças, Maquiavel retrata casamentos disfuncionais, esvaziados de amor. São comédias sobre traições. Na Mandrágora, Calímaco, um jovem de Florença, planeja dormir com Lucrécia, a mulher mais bonita daqueles tempos. Manipula o marido de Lucrécia para deixá-los a sós por ao menos uma noite. Na outra peça, Nicômaco cai de amores por sua filha adotiva, a Clizia que dá nome à peça, filha do primeiro marido de sua mulher, Sofronia - louca e irracional, no dizer do marido.

Maquiavel não tinha ilusões quanto à fauna humana. No prólogo de Clizia, ele diz: "Todos, e principalmente os jovens, se deleitam com a cupidez dos velhos, com a loucura dos amantes, com as mentiras de um criado, com a ganância dos parasitas, com a miséria dos pobres, a ambição dos ricos, os artifícios da prostituta - e com a reduzida confiança que se pode depositar nos outros."

Como a moral do filósofo era "utilitária", na definição do historiador inglês John Rigby Hale, autor de Maquiavel e a Itália da Renascença, ele "perdoava" os pecados da carne. "A fidelidade sexual não era considerada por Maquiavel, nem pelos seus amigos mais próximos, como parte necessária do casamento", escreveu Hale.

Quando um dos melhores amigos de Maquiavel, Vettori, pediu conselhos a respeito de um caso amoroso, Maquiavel foi explícito:

Lembrando o que as setas do Amor me causaram, sou obrigado a lhe dizer o quanto tenho lidado com ele próprio. De fato, eu o deixo fazer o que ele gosta e o tenho perseguido por colinas e vales, florestas e planícies; descobri que ele me concedeu mais encantos do que eu poderia atormentá-lo para ter. Portanto, tire o arreio, remova o cabresto, feche os olhos e diga: "Vá em frente, Amor, seja meu guia, meu líder; se as coisas acabarem bem, o prazer te pertencerá; se acabarem mal, a culpa é tua, eu sou seu escravo."

Vários dos biógrafos se perguntam se o "Amor" enaltecido por Maquiavel tinha mais a ver com a luxúria do que com o amor propriamente dito. Ou, pelo menos, do que se entende hoje por amor nas sociedades ocidentais. Afinal, o sexo casual não era incomum na Florença e na Roma renascentistas. O mesmo Vettori, casado, foi eloquente, numa carta em 1515: "Nada me delicia mais do que pensar em foder."

O renascimento, igualmente, deu fama à família Bórgia, na qual reinava a esbórnia. E Maquiavel, sardônico, teve presença de espírito para captá-la em toda a sua intensidade - política. Funcionário público, contemporâneo da desregrada família, escreveu muito sobre ela. E os Bórgia acabaram encarnando na história do mundo o adjetivo maquiavélico, num tempo em que artimanhas políticas e corrupção sexual caracterizavam os papados.

A dama mais famosa da época era Lucrécia Bórgia. Nascida em 1480, quando Maquiavel tinha 11 anos, era filha ilegítima do Papa Alexandre vi, nascido Rodrigo Bórgia. E irmã de César Bórgia, a principal inspiração de O Príncipe. Mesmo para os hábitos liberais de seus contemporâneos, Lucrécia era considerada dissoluta. Aos 13 anos, suas formas, desde menina, atraíam a atenção de todos os homens. A crônica a retrata de cabelos "cor de ouro" e os olhos "de um azul cintilante". Foi considerada a mulher mais bela de Roma. Só podia ser ela a personagem central de Mandrágora.



Na primavera de 1509, Maquiavel recebeu uma missão de courier e de agente de informação. Estava em Florença quando o mandaram pegar dois cavalos e partir a galope para Mântua, na Lombardia, a fim de entregar ao imperador Maximiliano a segunda parcela dos 40 mil florins que os florentinos lhe haviam prometido durante a conquista da cidade de Pisa. Chegou, pagou a áurea soma e circunstâncias fortuitas o levaram um pouco acima, a Verona, de onde teria que enviar informes sobre a guerra - mas não havia guerra.

Sem ter o que fazer, escreveu, copiosamente, conselhos às autoridades florentinas e cartas aos amigos. Em meio ao tédio, esboçou um negócio com economias feitas durante a viagem: montar uma granja. Pediu ao amigo Luigi Guicciardini para propor a um tal de Piero di Martino que tomasse conta das futuras galinhas. Apesar da modorra, estava de bom humor. Havia recebido uma carta na qual Luigi lhe revelava uma aventura amorosa e confessava um "imenso desejo" de rever uma "bela senhora".

Em resposta, Maquiavel lhe descreveu a passagem inconfessável que teve em Verona. Como estava em "carência conjugal", acabou aceitando o convite de uma "velha tratante" que lhe lavava a roupa. A "velha tratante" tanto fez que o convenceu a ver uma "certa camisa" que queria que ele provasse.

O relato é tão escalafobético que, repito, alguns maquiavelistas levantam dúvida sobre sua veracidade. Roberto Ridolfi, autor da mais famosa biografia do florentino, afirma que é "provavelmente verdadeiro". E racionaliza: "A descrição dos detalhes é forçada demais para ser verossímil, demasiado realista para ser real."

Apesar disso, Ridolfi não transcreveu a carta em seu livro. Só a última biografia, de Michael White (2007), traz um bom pedaço da carta. Outros biógrafos comentam a existência do relato.

Os detalhes do acontecido falam por si. Se você é uma pessoa sensível, não prossiga. Eis então a carta de Maquiavel para Luigi Guicciardini em resposta àquela na qual o amigo confessa desejar reencontrar uma bela senhora:



Admira-te, Luigi, e veja quanto a Fortuna dá ao homem diversos fins para um único motivo. Você a fodeu, teve a vontade de refodê-la e ainda tentou de novo. Mas eu fiquei aqui vários dias, cego pela carência conjugal, quando encontrei uma velha que me lavava as camisas, que mora em uma casa meio subterrânea onde não se vê a luz senão pela porta: e eu estava passando um dia por lá, ela me reconheceu e me fez uma grande festa, me pediu que lhe desse o prazer de ir à sua casa, com a desculpa de me mostrar umas camisas bonitas como se eu as quisesse.

Uma vez lá dentro, distingui na escuridão uma mulher agachada num canto, exalando modéstia com uma toalha cobrindo a cabeça e o rosto. Aquela velha tratante me tomou pela mão, me mostrou a mulher e me disse:

- Essa é a camisa que eu quero vender, mas queria que você a provasse antes e depois você a paga. Eu, cauteloso que sou, senti-me bastante amedrontado; porém, ficando a sós com a tal e no escuro (já que a velha saiu logo da casa, fechando a porta), para encurtar a história, sozinho com ela naquele breu, eu a fodi de um só golpe. Embora sentisse as suas coxas um pouco moles e a sua xoxota desanimada - e o seu hálito era um pouco fedido -, ainda assim, excitado como estava, fui aos finalmente com ela.

Tendo terminado, e com vontade de dar uma olhada na mercadoria, peguei um pedaço de madeira da lareira do quarto e o acendi, mas quase deixei cair das minhas mãos antes que se apagasse. Urgh! Quase caí morto com aquele borrão da visão, aquela mulher tão feia. A primeira coisa que notei nela foi um tufo de cabelo metade branco, metade preto - em outras palavras, esbranquiçado. Embora o topo de sua cabeça fosse careca (graças à calvície, era possível perscrutar alguns piolhos passeando por ali), alguns poucos e finos fios de cabelo desciam até a fronte.

Colaborador: Rodney Eloy

Fonte: Revista Piauí