sexta-feira, 22 de abril de 2016

Maquiavel nunca escreveu a frase “os fins justificam os meios” – síntese rasteira que gerou mal-entendidos


Você certamente já ouviu alguém dizer que “os fins justificam os meios”. Talvez você mesmo diga isso aos amigos quando comenta a cena nacional, que não anda nada fácil. A frase aparece em todas as conversas sobre política, seja no balcão do bar da esquina, seja no Congresso Nacional, seja nas universidades.

Com frequência, ela é atribuída ao filósofo e político italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), um dos mais ofuscantes gênios do Renascimento. Para muita gente, Maquiavel é tão definitivo que merece o posto de inventor da ciência política. Em sua obra máxima,O príncipe, ele promoveu a separação entre a moral religiosa (católica, para sermos precisos) e a ética política. Ao governante seriam permitidas condutas que um prelado no Vaticano condenaria. Nenhum problema. O que importa na política não é a santidade, mas o êxito das ações que conduzam ao bem do Estado e ao fortalecimento do poder do príncipe.

Maquiavel não “inventou” nenhum novo código para os negócios do governo. Ele apenas compreendeu e registrou a lógica do comportamento dos detentores do poder, que sempre fizeram coisas que os representantes de Deus diriam ser pecado mortal. Maquiavel decifrou as entranhas – as leis ocultas – desse modo de agir e as descreveu com a frieza e a precisão de um estudioso de anatomia e de fisiologista que disseca um cadáver. Assim é que é, goste você ou não.

O curioso é que a tal máxima – “os fins justificam os meios” – não aparece no texto de O príncipe.  Aliás, os estudiosos asseguram que Maquiavel não a escreveu nunca. Mesmo assim, a frase acabou se consagrando como a melhor síntese de todo o seu legado, uma síntese tão rasteira que acabou gerando mal-entendidos.

Hoje, quando um deputado embolsa uma bufunfa no banheiro do restaurante, inventa para si mesmo uma “justificativa maquiavélica” e toca a vida para a frente. “O meu fim é justo e bom”, ele repete, em pensamento. É certo que nosso deputado – fictício, por favor – entendeu tudo errado. A corrupção, disseminada como anda, não revigora nem o Estado nem as instituições, muito menos a Presidência da República. Estraga tudo, isso sim, mas o tal deputado nem liga. Ele se sente moderno como um cartão de crédito com chip, arrojado como um atacante do Barcelona, o próprio príncipe florentino. “Maquiavelismo” é com ele mesmo.

O que nosso deputado – fictício, é bom repetir, estamos falando de um deputado meramente hipotético – não sabe é que, em vez de os fins justificarem os meios, são os meios que determinam os fins. Explicando melhor: quando ele vai lá e aceita a propina, ou quando extorque, ou quando se vende com um sorriso na cara, não está servindo a um fim justo e bom para todos, mas está fabricando um fim que exigirá meios cada vez mais baixos e nocivos.

Não há como ser diferente. Ao lançar mão desse tipo de expediente, o fictício parlamentar e sua contraparte empresarial vão tecendo uma teia de relações obscuras que por sua vez vai determinar o caráter profundo daquele mandato, daquela casa legislativa, daquele país. Os meios empregados em política nunca são um atalho neutro, uma ferramenta que não deixa sinais, um desvio casual que depois ficará no esquecimento. Ao contrário, são a metodologia que acabará por definir o objeto final. Meios corruptos desaguam em métodos corruptos e, então, produzirão fins corrompidos.

Imagine, por exemplo, uma hipotética empresa estatal de petróleo num hipotético país continental. Se os dirigentes dessa companhia são instados a realizar negociatas, sua rotina de trabalho contaminará as finalidades todas da organização. A corrupção estragará a estatal não porque desvia dinheiro, mas principalmente porque desfia o foco com que ela precisa trabalhar. Outra vez, os meios escusos produzem fins escusos e desestruturam os fins que originalmente poderiam ser bons. Não há escapatória.

Essas ideias deveriam vir em socorro dos parlamentares do Congresso Nacional nestes dias. Para uns, o impeachment da presidente da República é o “bem maior” que justifica alegações malfeitas, atropelos formais do processo e assim por diante. Para outros, o “bem maior” é a permanência de Dilma Rousseff, e esse “bem maior” justifica a obtenção de votos com favores prestados pelo manejo obsequioso da máquina pública. Nenhuma dessas condutas, de um lado ou de outro, fortalecerá o Estado brasileiro. Outra vez, veremos que o emprego de certos (errados) meios acabará contaminando o resultado final. É também por isso que, aprovado ou rejeitado o impeachment, o Brasil corre um risco muito sério de ficar pior do que já está.


Fonte: Epoca