quinta-feira, 6 de junho de 2013

De facínora a defensor da liberdade

Nos últimos 500 anos, a reputação de Maquiavel variou muito. O florentino foi visto como diabólico, mentiroso e adulador de déspotas. Só a partir do século 20 veio à tona a figura de um pensador multifacetado e complexo.

Em 21 de junho de 1527, Nicolau Maquiavel morria aos 58 anos, na miséria, sem recuperar, malgrado os esforços de muitos anos, o crédito dos governantes. Suas duas grandes obras, que lhe poderiam ter tirado do esquecimento, só viriam a público postumamente. O príncipe, cujo rascunho data de 1513, foi publicado em 1532, um ano depois de Comentário sobre a década de Tito Lívio, composta entre 1518 e 1519.
Ao longo da vida, Maquiavel havia criado desafetos, mas também fora querido pelos amigos e pela família. Estes o descrevem, na correspondência que resiste ao tempo, como um homem honesto e confiável, apesar de trocista, e como pai terno e dedicado.
Foi nas décadas seguintes à morte de Maquiavel que O príncipe alcançou notoriedade, embora mais por meio da infâmia do que da fama. O evento político que marca o surgimento do antimaquiavelismo é o Massacre da Noite de São Bartolomeu em 1572, quando os reis católicos ordenam a execução de milhares de protestantes. Daí em diante, Maquiavel passaria a ser visto como o diabólico, o mentiroso, o adulador de déspotas. Ele é quem estaria por trás das ações de Henrique III e da rainha Catarina de Médici, filha de Lorenzo de Médici, a quem O príncipe foi dedicado.
O Massacre da Noite de São Bartolomeu
O Massacre da Noite de São Bartolomeu em 1572, quando a família real francesa ordena a execução de milhares de protestantes, marca o surgimento do antimaquiavelismo, com a associação de seu nome às ações de Henrique III e da rainha Catarina de Médici. A matança é aqui retratada pelo pintor François Dubois (1529-1584).
Essa crença se difundiu depois da circulação do Discours sur les moyens de bien gouverner ou Anti-Machiavel (1576), de Innocent Gentillet, que fazia uma crítica avassaladora, mas caricatural, a O príncipe. Antes disso, o autor huguenote de Le reveille matin des françois (1574) já havia coberto Maquiavel de vitupérios, ao chamá-lo de o “maior malfeitor do mundo”.
Jean Bodin tampouco escapou da onda antimaquiaveliana, ao acusar Maquiavel de promover o ateísmo, louvar a tirania e a amoralidade. Tamanha intensidade dos ataques levou diferentes estudiosos da obra de Maquiavel, entre os quais Hans Baron e Edmond Beame, a sustentar que o antimaquiavelismo aparece como um fenômeno francês no contexto das guerras religiosas.
Jean Bodin acusa Maquiavel de promover o ateísmo, louvar a tirania e a amoralidade
O “Maquiavel assassino” da trilogia Rei Henrique VI, de William Shakespeare, atravessaria as fronteiras da França, alcançando a Inglaterra na crise entre rei e Parlamento, de 1628 a 1642. Exemplo disso é Henry Parker, o principal propagandista do Parlamento, que identificava nas ações de Carlos I “as iníquas políticas do florentino”, baseadas na máxima ‘divide e impera’.
No entanto, esse primeiro antimaquiavelismo, fortemente dependente de uma interpretação ideológica d’O príncipe, ganharia contornos menos nítidos. Começava a emergir a face republicana de Maquiavel.
Deixando O príncipe de lado, James Harrington e Marchamont Nedham introduziram no debate público a obra Comentário sobre a década de Tito Lívio, para defender a ideia de que somente num regime republicano, como a Roma enaltecida por Maquiavel, seria possível ser cidadão e homem livre. Mais do que isso, o modelo romano evidenciaria a necessidade de devoção ao bem comum como modo de permitir a sobrevivência da república. Agora, portanto, convivem no mesmo espaço o Maquiavel facínora d’O príncipe e o Maquiavel patriota do Comentário.
Henrique VI
Maquiavel apareceu em várias peças, no século 16, como uma figura ardilosa e sem escrúpulos. Em Henrique VI, peça em três partes de Shakespeare, ele é mencionado como assassino.
Mas houve ainda quem louvasse um aspecto de Maquiavel até então secundário: seu agudo realismo político. No verbete dedicado ao pensador florentino do Dicionário histórico e crítico (1697), Pierre Bayle nota, não sem ironia, que as reflexões contidas n’O príncipe não configuram um guia de como os governantes devem se comportar, mas o resultado das observações de como reis e papas efetivamente se comportam.
Tendo como professores os próprios príncipes o estudo do mundo, Maquiavel se convertia assim no grande teórico da razão de Estado, para quem a política se define como o conhecimento da arte de preservar o Estado. Esse tipo de análise também permite inferir que ética e política são esferas separadas de ação e, por isso, constituem distintas disciplinas do conhecimento.
No século 19, os teóricos alemães da real politik dirão que a obra de Maquiavel inaugura a modernidade graças a seu relativismo histórico e cientificismo frio. Porém, já no século 18, antes que o surgimento da ciência política estivesse vinculado ao nome de Maquiavel, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau revelaram-se discípulos do florentino, ao endossarem, com maiores ou menores restrições, o ideal republicano de virtude cívica. Em particular, Rousseau não dissociava O príncipe e os Comentários, argumentando que o retrato dos monarcas naquela primeira obra visava a suscitar o ódio contra os tiranos.
O Maquiavel que alcança o século 20 é multifacetado e complexo. Persiste com admirável força o fundador da ciência política, cujo objeto de reflexão é o poder
O Maquiavel que alcança o século 20 é multifacetado e complexo. Persiste com admirável força o fundador da ciência política, cujo objeto de reflexão é o poder, como sustentam distintos pensadores, entre os quais Benedetto Croce e Claude Lefort.
Forte também é o Maquiavel republicano, cujo modelo romano de liberdade seria capaz de fornecer uma alternativa consistente às várias vertentes do liberalismo, conforme preconizam Quentin Skinner e Philip Pettit.
E, surpreendentemente, sobrevive o corruptor da gente de bem, o cínico, o Old Nick, nome que os ingleses dão ao diabo. Representantes mais conhecidos desse primeiro antimaquiavelismo são Leo Strauss e Jacques Maritain, para os quais o pensamento de Maquiavel é essencialmente malévolo e imoral. Maritain, em veia antiquada, chegou ao ponto de afirmar que Maquiavel ensinou príncipes e conquistadores a aplicarem a crueldade sem escrúpulos. Ele seria, em suma, um precursor de Hitler.
Nos últimos 500 anos, Maquiavel foi ‘maquiaveliano’, ‘antimaquiaveliano’ e o mais das vezes ‘maquiavélico’, adquirindo esses termos um sentido relativo e flutuante, conforme a voga. O século 21 já configura novos ‘maquiavéis’ e ‘maquiavelismos’: o democrata, o pagão, o religioso. Ao que parece, Maquiavel e suas obras continuarão a repor o enigma. Mas felizmente podemos falar de Maquiavel sem ofender sua memória.


Eunice Ostrensky
Departamento de Ciência Política
Universidade de São Paulo