“Os homens, universalmente, julgam as coisas mais com os olhos do que com as mãos, porque todos podem ver, mas poucos podem sentir. Todos veem aquilo que pareces, mas poucos sentem o que és; e esses poucos não ousam opor-se à opinião da maioria, que tem, para defendê-la, a majestade do Estado” (Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, tradução de Maria Julia Goldwasser, 4ª edição, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, pág. 87).
Entre os enganos frequentes – e são tantos – das análises que se ocupam de investigar a confluência entre a política e a comunicação está o de supor que o engenho de seduzir o olhar alheio tenha sido um produto do século 20 ou, vá lá, uma invenção do final do século 18, no bojo das revoluções que culminariam por fabricar nos comuns do povo a ilusão de que seriam eles os protagonistas da História. Claro que o século 20 massificou a propaganda política, assim como massificou tudo o mais. Claro, também, que a Revolução Francesa não se cansou de “jogar para a plateia”, a ponto de usar o teatro da guilhotina como a prova sangrenta de que o novo poder, não sendo condescendente com os nobres, não seria condescendente com mais ninguém (nem mesmo com Danton, o revolucionário que foi executado aos 34 anos de idade, ou Robespierre, decapitado aos 36).
Vista como um fenômeno de comunicação política, podemos dizer que, em seu início, a Revolução Francesa triunfou porque soube proclamar a si mesma, nos panfletos parisienses, como a emissária da liberdade, da igualdade e da fraternidade. No final, malogrou porque lhe restou apenas a imagem de ser a lâmina do terror e nada além do terror. A comunicação também esteve no centro da estratégia que levou à criação dos Estados Unidos da América: foi com uma série de artigos de jornal que os federalistas ganharam os bons olhos da opinião pública para a causa de que a união faria a força dos Estados.
Rituais carnavalescos
As técnicas de propaganda na política, a partir do século 18, são bem conhecidas de todos. Mas elas não foram inventadas ali. Esse tipo de comunicação é bem anterior à Revolução Francesa. Em 1515, quando entregou a Lorenzo o texto com seus conselhos, Nicolau Maquiavel alertava para isto: os homens julgam mais com os olhos do que com o juízo, quer dizer, formam o juízo a partir do que veem. Em O Príncipe ele ensina que política é jogo de cena. “A um príncipe não é necessário ter de fato todas as qualidades (ele fala de “piedade, fé, integridade, humanidade, religião”), mas é bastante necessário parecer tê-las.” Nesse ponto, o pensador florentino ecoa Júlio César – que teria dito, no ano 63 a.C., que “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecer honesta” –, mas o faz com uma distinção crucial: para ele, a honestidade da mulher de César seria um dado de pura irrelevância: se ela realmente parecesse honesta, não teria necessidade alguma de ser honesta.
Desde Júlio César – e desde muito antes, na verdade – a conquista, o exercício e a manutenção do poder envolvem a construção, o uso e a manutenção da imagem. A política se faz pelas armas e pela comunicação, num combinado que conjuga força e circo (e pão também, ocasionalmente), para erguer e entronizar uma imagem.
É bem verdade que o século 20 trouxe rupturas estruturais nessa fórmula, com o aprimoramento e agigantamento industrial das ferramentas de sedução (dos olhos dos homens) pela imagem. A partir da indústria cultural a comunicação passou a exercer funções que antes (em Maquiavel também) cabiam à violência direta. Mais: o uso da violência converteu-se numa forma ultraelaborada de espetáculo a serviço da comunicação política. Hoje, muito mais do que antes, os atentados terroristas (que sempre foram atos de propaganda perversa), as manifestações de rua (propaganda relativamente benéfica) e mesmo as guerras são atos (espetaculares) de comunicação, cujo objetivo é fixar ou destruir imagens que disputam o imaginário em torno do poder. O terrorismo e a guerra passaram a ser não mais a continuação da política por outros meios (Clausewitz), mas o prolongamento da comunicação política por meio de signos de exceção.
Política, enfim, é comunicação – e essa comunicação pode lançar mão da força para tocar as retinas dos homens que não sabem conhecer o mundo pela própria ação. Do mesmo modo, e com os mesmos propósitos, lança mão das atividades circenses de maior envergadura, como os grandes festivais de rock e as jornadas esportivas de visibilidade planetária. Na comunicação política os rituais carnavalescos e festivos são equivalentes comunicacionais dos bombardeios redentores.
Artilharia publicitária
É o que veremos em breve. Como bem sabe o leitor, dentro de cem dias, ou um pouco menos, será aberto no Brasil um celebrado Campeonato Mundial de Futebol, que contará com a participação de um time composto de atletas brasileiros especialmente selecionados para isso. O plano de comunicação em que esse campeonato se vai desenvolver é o mesmíssimo em que as eleições presidenciais vão transcorrer logo em seguida (lembremos que a campanha eleitoral vai começar, oficialmente, em julho). As telas eletrônicas serão as mesmas. Os destaques do noticiário serão os mesmos. Os lugares físicos também: ruas, praças, aglomerações humanas. Os signos da nacionalidade – que servirão de âncora para a opinião crédula da maioria – atravessarão os dois eventos sem ter de mudar a fantasia. As eleições nacionais serão a continuação da Copa do Mundo – e pelos mesmos meios.
A partir de junho, a majestade do Estado estará a serviço da imagem dos governos (federal e estaduais). Vem aí uma artilharia de guerra publicitária sob a forma de um circo de congraçamento. O alvo serão os olhos dos eleitores. Maquiavel entrará no picadeiro, encarnado por marqueteiros e candidatos que, sem ter lido o que ele escreveu, sabem de cor as lições que ele deixou.
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Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM