sábado, 21 de maio de 2016

O falso Machiavel dos golpistas

Em primeiro lugar, parabéns aos blogueiros sujos que, a partir de hoje, se encontram em Belo Horizonte. Os blogs nunca foram tão importantes, nunca representaram, de maneira tão pura, a democracia, se considerarmos a democracia como um regime que respeita não apenas a vontade da maioria (expressa no voto, não em pesquisas privadas), mas também a liberdade de expressão, o conflito pacífico de ideias, a dissidência ideológica, a crítica ao poder.
Não pude comparecer ao evento fisicamente, por conta de uma viagem internacional. Estou acompanhando tudo pela internet, porém, e temos vários correspondentes fazendo a cobertura.
A esquerda ganhou quatro eleições presidenciais consecutivas mas jamais obteve o poder, embora a mídia gostasse de mistificar e exagerar a função da presidência da república na gestão do Estado.
Os aparelhos judiciais no país nunca passaram por um processo de oxigenação democrática. Saímos da ditadura sem mexer em sua estrutura. Pior: ampliamos o seu poder, quiçá seduzidos pelo sonho ingênuo de que, fortalecendo a burocracia estatal civil, ficaríamos protegidos de novo golpe militar.
Sim, aparentemente ficamos livres de novo golpe militar, mas esquecemos que o golpe de 1964 foi também civil. Teve apoio da mídia, dos empresários e do judiciário: dos mesmos que protagonizaram o golpe de Estado de 2016.
Voltando aos blogs, eles sempre denunciaram a ditadura midiática e judicial, e tentaram mostrar à opinião pública que o Executivo, única instância 100% filtrada pelo voto popular nacional, não era o problema principal da nossa sociedade.
Há mais de dois anos que os blogs, em especial este Cafezinho, alertavam para o apagão político do governo. Era preciso atuar politicamente, investir em ações abrangentes e ousadas de contra-informação. Era preciso pensar nisso enquanto estratégia urgente de defesa do interesse nacional!
Sempre tivemos a impressão de que setores do governo, inclusive a própria presidenta, por ter atuado na guerrilha, desenvolveram um estranho preconceito contra a política, como se a política fosse algo subversivo. Como se a luta política ainda fosse uma ação clandestina, guerrilheira, e por isso o correto era não fazer política. O politicamente correto, para um governo que desejava jogar conforme as regras ditadas pelas velhas elites políticas, era abster-se, não se envolver em nenhum tipo de conflito - mesmo que apenas intelectuais, verbais, ou seja, no sentido mais puro e nobre do termo "política" - com seus adversários.
O governo Dilma esqueceu os jovens, desprezou o poder de seu próprio eleitorado, negligenciou tragicamente o debate político, dando espaço ao avanço rápido e avassalador das forças adversárias.
Alertamos também para o avanço das conspirações midiático-judiciais. Era possível prever exatamente onde elas queriam chegar. E foi lá que elas chegaram, infelizmente.
O novo governo, no entanto, liderado por um vice-presidente usurpador, parece guiado por uma leitura apressada de Maquiavel.
Os golpistas esquecem que o grande pensador florentino, embora tenha dado conselhos aos príncipes, era um republicano apaixonado pela liberdade e pela democracia.
De fato, Maquiavel usa de uma franqueza que flerta com a crueldade: no capítulo 5 do Príncipe, ele argumenta que as duas únicas maneiras de dominar países acostumados à liberdade e às leis são: arruinar-lhes, como fez Roma em Cartago, completamente destruída; ou criando, dentro deles, uma elite subserviente e amiga, que seja consciente de que seu poder deriva dos privilégios concedidos pelo príncipe.
O desprezo com que Michel Temer trata os setores que militaram pela vitória da chapa com a qual se elegeu, guarda semelhança com o desprezo de um tirano para com a população de um país estrangeiro dominado através da violência.
Temer despreza a esquerda porque ele sabe que a esquerda tem plena consciência de que ele é um golpista, assim como um povo sabe que um tirano invasor só poderá governar através da violência.
A violência e o desrespeito de Temer, arrasando a administração federal, baixando decretos truculentos, desmantelando programas, nomeando ministros de oposição, apenas se explica pelo medo que ele tem de uma reação.
Michel Temer ainda é um presidente interino. O processo de impeachment ainda será julgado pelo Senado. Sua pressa denota uma arrogância sem limites.
Maquiavel também escreveu um livro sobre a república, em que elogia a democracia e o bom senso do povo; e faz invenctivas contra a tirania.
No capítulo 46 de Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel pondera que sempre que um grupo social obtém o poder de maneira abrupta e pouco legítima, ele tende a se assoberbar, a agredir seus adversários, "como se fosse necessário ofender ou ser ofendido".
Maquiavel defendia, no mesmo livro, o bom senso do povo - e aqui lembro que a opinião do povo apenas pode ser medida pelo sufrágio universal, única "pesquisa" que é regulamentada segundo parâmetros republicanos e democráticos.
No início do capítulo 58 dos Discursos, Maquiavel adverte que dirá uma coisa "fora do senso comum": que o povo, mesmo ao cometer erros, costuma ter, geralmente, opiniões mais prudentes e sábias que os príncipes.
O preconceito contra o povo, diz Maquiavel, dentre outras causas, pode ser explicado por que "se pode falar mal do povo sem medo, mesmo que este esteja no poder (numa república democrática, por exemplo); de príncipes, se fala sempre com muito medo e respeito."
Por aí se entende porque Michel Temer se apressa a demitir até garçons do Palácio, pela simples suspeita de que sejam simpatizantes do PT, e, nos primeiros dias de governo, já plantou notas agressivas contra blogs na grande imprensa chapa-branca: porque ele mesmo se vê como um tirano, ele mesmo demonstra consciência de que seu poder não emana do povo, e sim de uma conjuração golpista de elites corruptas e autoritárias.
Um governo assim não pode tolerar a crítica.
O PT se sustentou no poder por 13 anos, mal ou bem, com toda a grande imprensa promovendo o mais longevo e agressivo ataque político a um governo eleito da história das democracias. As corporações midiáticas que assacavam o governo diuturnamente, eram as mesmas que criminalizavam os blogs porque estes produziam singelos momentos de contra-informação às suas campanhas golpistas.
Hoje a grande imprensa volta a se alinhar ao governo golpista e, ó surpresa, continua criminalizando os blogs, desta vez porque estes... fazem críticas ao governo.
Michel Temer e as oligarquias golpistas que o sustentam já entenderam que tiranias, para se sustentarem, precisam ampliar a repressão. Talvez tenham esquecido, porém, que, ao fazê-lo, produzem mais insatisfação, fortalecem os movimentos de oposição democrática, e preparam o terreno para o retorno à democracia. Aconselha-se, todavia, que a oligarquia não abuse da repressão, se quer que a democracia, quando retornar, consiga controlar os seus próprios impulsos violentos.
Um tirano pode derrubar uma democracia, mas não pode interromper o processo dialético que move a história.
Assim como a tirania nasce, frequentemente, do ódio incontrolável das elites que se sentem prejudicadas pela democracia, a democracia também nasce da insatisfação provocada pela arrogância dos tiranos.
A cada volta da história em que a democracia renasce, ela vem mais forte.
É o que acontecerá quando derrubarmos a nova tirania: viremos infinitamente mais fortes, mais conscientes, mais preparados. Saberemos que, para consolidar a democracia no país, será preciso disseminar a cultura democrática em todas as instituições: polícia, judiciário, mídia, legislativo e executivos.
Parabéns, blogueiros!
O futuro lhes contempla, orgulhoso de seu papel hoje. Enquanto o golpe é uma derrota moral histórica para nossas elites, a resistência dos blogs é o prefácio de uma vitória inexorável do povo brasileiro!
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