Maquiavel tomou como modelo a República Romana, aquela que no passado foi capaz de atingir a forma mais perfeita de organização política, para compreender a vida política de sua própria cidade e época
Um dos livros mais importantes de Nicolau Maquiavel (1469-1527) – e bem menos conhecido do que O príncipe – é intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. O livro apresenta um longo comentário sobre a história romana, tal qual escrita não somente pelo historiador Tito Lívio, mas também por muitos outros que na época de Maquiavel (e até hoje) eram considerados ‘clássicos’, como Salústio e Tácito. Este fato, por si só, indica a importância dos romanos para o pensador florentino.
Lendo sua história, ele encontrava a ocasião para formular suas próprias reflexões políticas, que sempre tinham em vista esclarecer os fatos políticos de seu tempo. Maquiavel não estava preocupado em contar novamente a história de Roma. Seu objetivo era servir-se de Roma como uma espécie de modelo com o qual seria possível avaliar a qualidade da vida política de sua cidade natal, Florença.
Mas por que Roma? Como ela poderia servir de modelo? O que devemos entender por ‘qualidade da vida política’? Para responder a essas questões, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que a Roma que interessava a Maquiavel (e a muitos outros pensadores do Renascimento italiano) era aquela do período republicano.
A longa história política romana é dividida em três períodos: no primeiro, a cidade era governada por reis, época que termina por volta do ano 495 a. C. O segundo período, que se estende até meados do século 1 a. C., é o republicano. O terceiro período é marcado pelo governo dos césares, o período da Roma imperial, que perdura até o fim do Império Romano do Ocidente, tradicionalmente datado em 476 d. C.
A República Romana se diferenciava dos outros períodos na medida em que nela o exercício do poder político era entendido como um afazer coletivo, que concernia a todos os cidadãos, mais ou menos diretamente. A palavra ‘república’ conserva ainda a marca dessa forma de organização política em que o poder era partilhado: ela deriva de ‘res publica’, ou seja, ‘coisa pública’. Embora, na realidade, apenas alguns cidadãos ocupassem os mais altos cargos políticos, o poder era compreendido como coisa pública, jamais podendo se identificar com um homem ou um cidadão em particular.
Por esse motivo, essa ‘comunidade política’ somente podia se manter se todos os cidadãos se considerassem abaixo da lei, quer dizer, a ideia de república não se separa da ideia de igualdade cívica, de liberdade (no sentido de estar protegido da vontade arbitrária de outro cidadão) e de governo das leis.
Esse conjunto de ideias políticas começou a se desintegrar a partir do momento em que os romanos não foram mais capazes de impedir o dilaceramento de sua comunidade política, destruída pelas guerras civis e pelos conflitos de interesses entre os diferentes segmentos de sua classe dirigente. Roma perdeu o sentimento de sua integridade política, que somente pôde ser recuperada com o aparecimento de uma figura que unisse novamente a cidade, mas ao preço de quebrar o fundamental princípio da igualdade. Este homem foi Caio Júlio César.
Roma inicia assim sua história imperial. Do ponto de vista da organização política, ela será marcada pela concentração do poder nas mãos de um único homem, superior aos demais e às próprias leis. Seu título era o de princeps (o ‘principal’, o ‘príncipe’). Podemos agora compreender os motivos que levaram Maquiavel a ‘estudar’ a história da República Romana.
Boas leis
A Roma republicana chama a atenção de Maquiavel porque a cidade em que ele vivia e atuava politicamente (por 14 anos, exerceu relevante ofício político) também podia reivindicar para si o título de república. A República Florentina da época de Maquiavel (sobretudo entre 1494 e 1512) adotava princípios políticos muito próximos daqueles que encontramos em Roma, apesar das grandes diferenças que separavam as duas cidades: liberdade, igualdade e governo das leis.
A República Florentina da época de Maquiavel adotava princípios políticos muito próximos daqueles que encontramos em Roma: liberdade, igualdade e governo das leis
Se a essa afinidade acrescentarmos o alto valor que Maquiavel e quase todos os renascentistas conferiam à cultura e à história romanas, podemos entender a força do exemplo de Roma. A cidade aparecia como a República ideal, aquela que nos tempos passados foi capaz de atingir a forma mais perfeita de organização política. Esse sucesso seria atestado pelo fato de ter alcançado um domínio territorial e político até então desconhecido.
Mas como entender a superioridade política romana? Esta é a pergunta mais importante para Maquiavel e respondê-la é um de seus principais objetivos. Segundo ele, Roma alcançou grande sucesso político e militar porque foi capaz de fazer o que nenhuma cidade ou república antes dela havia feito: Roma soube canalizar a ‘energia política’ de seus cidadãos em benefício da cidade. Essa energia política Maquiavel chamava de ‘humores’.
De acordo com sua teoria política, toda cidade era dividida entre dois humores: o dos ‘grandes’ (que é basicamente o desejo de dominar) e o do ‘povo’ (que é o desejo de não ser dominado). A diferença entre esses humores causa conflito em toda e qualquer cidade. A resolução desse conflito é o que vai definir a qualidade da vida política da república.
Se o conflito dá origem a boas leis (como em Roma), a cidade poderá atingir a melhor forma de organização política
Se o conflito dá origem a boas leis (como em Roma), a cidade poderá atingir a melhor forma de organização política. Nela os cidadãos conhecerão a liberdade na medida em que satisfizerem seus desejos por via pública, por meio de instituições políticas nas quais todos eles (grandes e povo) terão o respaldo da lei para agir, mas também verão sua ação limitada pela lei. Se o conflito resulta na imposição de uma classe sobre outras (como muitas vezes aconteceu em Florença), então os cidadãos buscarão satisfazer seus interesses por meios privados, cada um desejando apropriar-se do poder para seu benefício particular.
O grande valor da história política romana, para Maquiavel, se devia a sua grande capacidade de dirigir para fins propriamente políticos (visando o bem comum) as discórdias presentes em qualquer associação humana. Ser capaz de tirar benefícios desse exemplo é o que irá decidir, segundo ele, o destino político dos florentinos e de toda e qualquer república.
Helton Adverse
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais