terça-feira, 30 de abril de 2013

Humores de Roma


Maquiavel tomou como modelo a República Romana, aquela que no passado foi capaz de atingir a forma mais perfeita de organização política, para compreender a vida política de sua própria cidade e época

Um dos livros mais importantes de Nicolau Maquiavel (1469-1527) – e bem menos conhecido do que O príncipe – é intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. O livro apresenta um longo comentário sobre a história romana, tal qual escrita não somente pelo historiador Tito Lívio, mas também por muitos outros que na época de Maquiavel (e até hoje) eram considerados ‘clássicos’, como Salústio e Tácito. Este fato, por si só, indica a importância dos romanos para o pensador florentino.
Lendo sua história, ele encontrava a ocasião para formular suas próprias reflexões políticas, que sempre tinham em vista esclarecer os fatos políticos de seu tempo. Maquiavel não estava preocupado em contar novamente a história de Roma. Seu objetivo era servir-se de Roma como uma espécie de modelo com o qual seria possível avaliar a qualidade da vida política de sua cidade natal, Florença.
Mas por que Roma? Como ela poderia servir de modelo? O que devemos entender por ‘qualidade da vida política’? Para responder a essas questões, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que a Roma que interessava a Maquiavel (e a muitos outros pensadores do Renascimento italiano) era aquela do período republicano.
A longa história política romana é dividida em três períodos: no primeiro, a cidade era governada por reis, época que termina por volta do ano 495 a. C. O segundo período, que se estende até meados do século 1 a. C., é o republicano. O terceiro período é marcado pelo governo dos césares, o período da Roma imperial, que perdura até o fim do Império Romano do Ocidente, tradicionalmente datado em 476 d. C.
Roma republicana
Como muitos pensadores do Renascimento italiano, Maquiavel interessava-se pela cidade de Roma no período republicano – aqui representada por Friedrich Polack. Sua intenção não era contar a história da cidade, mas utilizá-la como modelo para avaliar a qualidade da vida política de sua cidade natal, Florença. (fonte: 'Geschichtsbilder', 1896)
A República Romana se diferenciava dos outros períodos na medida em que nela o exercício do poder político era entendido como um afazer coletivo, que concernia a todos os cidadãos, mais ou menos diretamente. A palavra ‘república’ conserva ainda a marca dessa forma de organização política em que o poder era partilhado: ela deriva de ‘res publica’, ou seja, ‘coisa pública’. Embora, na realidade, apenas alguns cidadãos ocupassem os mais altos cargos políticos, o poder era compreendido como coisa pública, jamais podendo se identificar com um homem ou um cidadão em particular.
Por esse motivo, essa ‘comunidade política’ somente podia se manter se todos os cidadãos se considerassem abaixo da lei, quer dizer, a ideia de república não se separa da ideia de igualdade cívica, de liberdade (no sentido de estar protegido da vontade arbitrária de outro cidadão) e de governo das leis.
Esse conjunto de ideias políticas começou a se desintegrar a partir do momento em que os romanos não foram mais capazes de impedir o dilaceramento de sua comunidade política, destruída pelas guerras civis e pelos conflitos de interesses entre os diferentes segmentos de sua classe dirigente. Roma perdeu o sentimento de sua integridade política, que somente pôde ser recuperada com o aparecimento de uma figura que unisse novamente a cidade, mas ao preço de quebrar o fundamental princípio da igualdade. Este homem foi Caio Júlio César.
Estátua de Júlio César
Estátua de Júlio César, em Roma. O imperador foi responsável por recuperar a organização política da cidade, desintegrada pelas guerras civis e conflitos de interesses entre os segmentos de sua classe dirigente ainda no período republicano. Mas com a recuperação veio a concentração do poder nas mãos de um único homem, superior aos demais e às próprias leis. (foto: Fickr/ mmarftrejo – CC BY-NC-SA 2.0)
Roma inicia assim sua história imperial. Do ponto de vista da organização política, ela será marcada pela concentração do poder nas mãos de um único homem, superior aos demais e às próprias leis. Seu título era o de princeps (o ‘principal’, o ‘príncipe’). Podemos agora compreender os motivos que levaram Maquiavel a ‘estudar’ a história da República Romana.
   

Boas leis

A Roma republicana chama a atenção de Maquiavel porque a cidade em que ele vivia e atuava politicamente (por 14 anos, exerceu relevante ofício político) também podia reivindicar para si o título de república. A República Florentina da época de Maquiavel (sobretudo entre 1494 e 1512) adotava princípios políticos muito próximos daqueles que encontramos em Roma, apesar das grandes diferenças que separavam as duas cidades: liberdade, igualdade e governo das leis.
A República Florentina da época de Maquiavel adotava princípios políticos muito próximos daqueles que encontramos em Roma: liberdade, igualdade e governo das leis
Se a essa afinidade acrescentarmos o alto valor que Maquiavel e quase todos os renascentistas conferiam à cultura e à história romanas, podemos entender a força do exemplo de Roma. A cidade aparecia como a República ideal, aquela que nos tempos passados foi capaz de atingir a forma mais perfeita de organização política. Esse sucesso seria atestado pelo fato de ter alcançado um domínio territorial e político até então desconhecido.
Mas como entender a superioridade política romana? Esta é a pergunta mais importante para Maquiavel e respondê-la é um de seus principais objetivos. Segundo ele, Roma alcançou grande sucesso político e militar porque foi capaz de fazer o que nenhuma cidade ou república antes dela havia feito: Roma soube canalizar a ‘energia política’ de seus cidadãos em benefício da cidade. Essa energia política Maquiavel chamava de ‘humores’.
De acordo com sua teoria política, toda cidade era dividida entre dois humores: o dos ‘grandes’ (que é basicamente o desejo de dominar) e o do ‘povo’ (que é o desejo de não ser dominado). A diferença entre esses humores causa conflito em toda e qualquer cidade. A resolução desse conflito é o que vai definir a qualidade da vida política da república. 
Se o conflito dá origem a boas leis (como em Roma), a cidade poderá atingir a melhor forma de organização política
Se o conflito dá origem a boas leis (como em Roma), a cidade poderá atingir a melhor forma de organização política. Nela os cidadãos conhecerão a liberdade na medida em que satisfizerem seus desejos por via pública, por meio de instituições políticas nas quais todos eles (grandes e povo) terão o respaldo da lei para agir, mas também verão sua ação limitada pela lei. Se o conflito resulta na imposição de uma classe sobre outras (como muitas vezes aconteceu em Florença), então os cidadãos buscarão satisfazer seus interesses por meios privados, cada um desejando apropriar-se do poder para seu benefício particular.
O grande valor da história política romana, para Maquiavel, se devia a sua grande capacidade de dirigir para fins propriamente políticos (visando o bem comum) as discórdias presentes em qualquer associação humana. Ser capaz de tirar benefícios desse exemplo é o que irá decidir, segundo ele, o destino político dos florentinos e de toda e qualquer república.

Helton Adverse
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Seminário na Unesp discute 500 anos de “O Príncipe”, obra de Maquiavel


Evento acontece de 6 a 8 de maio e tem coordenação do professor Rafael Salatini, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) da Unesp
A Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp, Câmpus de Marília, organizará um seminário sobre Nicolau Maquiavel, em comemoração aos 500 anos de sua mais importante obra, "O Príncipe". O evento acontece de 6 a 8 de maio e tem coordenação geral do professor Rafael Salatini, do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) da Unesp.
A palestra de abertura do seminário, "Notas sobre as relações entre os fins e os meios em Maquiavel", será coordenada por Patrícia Fontoura Aranovich, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). O encerramento será realizado com a palestra "Maquiavel antes do Príncipe: Os escritos diplomáticos do Secretário Florentino", de Newton Bignotto, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Para fazer a inscrição e conhecer a programação completa, acesse o site da Unesp, Câmpus Marília.

SERVIÇO
Seminário Maquiavel - 500 Anos de O príncipe (1513-2013)
De 6 a 8 de maio
Faculdade de Filosofia e Ciências (Av. Hygino Muzzi Filho, 737, Marília - SP)
Inscrições: R$ 18,00
Fonte: Saopaulo.sp


segunda-feira, 15 de abril de 2013

SUCESSÕES E ADMINISTRAÇÕES



Ruy Nogueira Barbosa
Ante a renúncia do Papa BENTO XVI, mediante conclave, houvera a eleição de novo pontífice, a saber: Papa Francisco.
De acordo com as informações veiculadas pela mídia, a renúncia do Papa BENTO XVI se dera em decorrência de uma guerra política nos bastidores do Vaticano, uma disputa que envolve uma rede de intrigas, do escândalo do vazamento de documentos secretos denunciando corrupção nos negócios do Vaticano, além dos casos de pedofilia, que envolveram padres do mundo todo, ou seja, crise interna eminentemente político-administrativa.
O jornal do Vaticano, fazendo seu papel, garante que o Papa não estaria fugindo das suas responsabilidades, nem das intrigas. Mas acredita que só com o tempo os fiéis e a igreja vão entender a importância de sua herança e a nobreza do seu gesto.
Este pequeno introito, assim fora feito para traçarmos um paralelo com a administração municipal de Poxoréu-MT, instalada em decorrência de regular processo eleitoral.
Aqui, a população elegera a prefeita Sra. JANE SANCHES LOPES, determinada e individualizada pessoa, na condição de primeira gestora e ordenadora maior das despesas, entretanto, do que se tem visto até o momento, esta não se encontra de fato exercendo a administração do município, posto que o Sr. LINDBERG NUNES ROCHA, funcionário do gabinete da vice-governadoria estadual, usurpa essa função, comparecendo diariamente no paço municipal dando e ditando ordens.
Tem-se ainda como mais que curioso e estarrecedor fato, que a Câmara Municipal, até o presente momento, não vê esta esdrúxula situação, entretanto, se a vê, faz vistas grossas, como se tal quadro fosse “normal” e nada de estranho estivesse ocorrendo. Nesse particular, o que mais me espanta, é que uma diminuta parte da população, gente esclarecida, culta, formadora de opinião defende esta imoralidade, com o seguinte discurso:
“Poxoréu está de parabéns, em razão de que a prefeita Jane - sabiamente - tem com ela trabalhando ombro-a-ombro o ex-prefeito (por diversas gestões) Dr. Lindberg, o qual, por ser seu marido, em nada macula a gestão de Jane. Ao contrário, é contribuição de alto valor e que só tem a elevar mais e mais o nível da atual administração. Isto é alvo de críticas?! Claro!!! Mas, que em nada contribui. É bom e digno de aprovação.Prof. Luiz Carlos Ferreira”(SIC)(grifo meu)
Professor Luiz Carlos!!!!!!, como é de seu conhecimento, posto que culto, filologicamente, a distância é abissal entre “CONTRIBUIR” (cooperar para, ajudar, colaborar, auxiliar, coadjuvar, cooperar) e “ADMINISTRAR” (conduzir, governar, controlar, aplicar, comandar, dirigir, gerenciar, gerir, governar, ministrar, reger).
A situação atual vivenciada na administração deste município, é inadmissível e inaceitável, é a materialização do ESTELIONATO ELEITORAL, é tão absurdo quanto se eleger a “DILMA” - Presidente, porém se ter “Sr. JOSÉ DIRCEU” – como Administrador, isto é mais que “gato por lebre”. Ademais, destaca-se: estes meios jamais serão justificativas para os fins desejados.
Demasiado não é relembrar que nesta mesma unidade administrativa do Estado, a história se repete, basta que se faça um pequeno esforço, e revejamos a Administração do Sr. LUCAS RIBEIRO VILELA (31/01/73 à 31/02/76), onde o administrador de fato jamais fora o eleito, posto que quem administrava era o Sr. LINDBERG NUNES ROCHA, leia-se, fato digno de perpetuação, quer seja pelos contadores de “causos” e ou aqueles relatados em documentos de conhecimento e domínio público, que fazem os necessários registros históricos.
Outrora lecionara Maquiavel que “a primeira impressão que se tem de um governante e da sua inteligência é dada pelos homens que o cercam”, e a situação neste momento vivenciada, não trás em si elementos dignos de confiabilidade e ou admiração, mas sim da materialização do estelionato eleitoral por mim noutra contribuição noticiada (O Poxoréu que eu quero, 03/2012).
Pela ordem, a propósito, ainda que preclusa e superada a questão de estelionato eleitoral, não se pode esquecer que o exercício da administração municipal por particular, portanto, incompetente para o exercício da função pública, caracteriza conduta tipificada no artigo 328 do Código Penal Brasileiro, no Capítulo “Dos Crimes Praticados por Particular Contra a Administração em Geral”, eis que configura “usurpação da função pública”. Se nomeado para tal função, inafastável a incidência da legislação que trata do nepotismo ou da ficha limpa.  Nesses casos,  merece a  imediata intervenção do Ministério Público para afastar do cenário a ilicitude.
A falta de comprometimento, ou melhor, o grande interesse pela coisa pública demonstrada por aqueles que concorreram ao cargo maior, parece que fora “momentâneo”, posto que diante dessa improbidade administrativa permanecem sepulcralmente silentes, e, em assim sendo, vejo que a maior tristeza daqueles que não venceram, não deve ser a derrota, mas é a vergonha de não se colocarem em permanente estado de luta.
Como se vê, do quadro instalado aqui nestas terras tropicais, diametralmente oposto é daquele vivido no vaticano, pois aqui, não houvera renuncia formal, expressa, escrita, mas tácita, informal, posto que a eleita não governa, se limita às aparências, no faz de conta, “reina mas não governa”, repisa-se, fato já vivenciado na revolução inglesa, e também aqui na ex-Capital dos Diamantes (31/01/73 à 31/02/76 - Prefeito Lucas Ribeiro Vilela e como Vice o Sr. Bráulio Silva). Lá em terras romanas, ao contrário, se não governa, renuncia, deixa o poder para quem pode governar.
E àqueles que confiaram em discursos construídos sobre um passado e na pífia e esquálida administração que sucedera, estão destinados a perder o futuro, haja vista que não há nada mais difícil ou perigoso do que tomar a frente na introdução de uma mudança sem preparo e quadros, destacando que mudança não assegura necessariamente progresso, mas o progresso implacavelmente requer mudança.
Ruy Nogueira Barbosa

sexta-feira, 5 de abril de 2013

O ‘Príncipe’ 500 anos depois e Maquiavel ainda hoje



Foi no final do Outono de 1513, portanto há 500 anos, que um homem de nome Nicolau Maquiavel, confinado, por razões políticas, ao espaço limitado da sua quinta em Sant'Andrea, publicou um pequeno livro intitulado ‘O Príncipe’, que viria a transformar-se num clássico absoluto da filosofia política.

Diz-se que uma das preocupações de Maquiavel era fazer chegar um exemplar autografado do livro a Erasmo de Roterdão, que se encontrava doente e mesmo no final da vida. Tanto quanto se sabe, o livro não che-gou a tempo às mãos do grande humanista que sonhava com uma Europa unida, sem guerra e sem querelas religiosas que a poderiam levar a um irreversível colapso.

Maquiavel representava o pensamento pragmático e instrumental de quem usa com destreza e engenho os instrumentos que perpetuam o exercício do poder. Erasmo tinha uma visão mais utópica, embora, conhecendo como conhecia a Antiguidade greco-latina, soubesse que o pensamento de um homem como Maquiavel, que desconhecia como teórico e quadro político, já muitas vezes fora antes posto em prática, embora de forma não sistematizada em tratado de ciência política.

O que verdadeiramente contava e conta no pensamento de Maquiavel é o êxito dos resultados na hora de se avaliar o cumprimento dos objectivos, ainda que isso leve os fins a legitimarem todos os meios. Erasmo pensava de modo diferente.

Ao longo dos séculos que entretanto passaram, o autor deste texto de cerca de 30 mil palavras, também autor de uma peça de teatro intitulada ‘A Mandrágora’ e de outros livros, foi visto como uma personificação do mal e deu mesmo origem a um adjectivo que muito penaliza quem com ele é presenteado. Defendia Maquiavel que, em política, é preferível ser temido a ser amado, e essa passou a ser a perspectiva dos detentores do poder absoluto, dos autocratas e dos ditadores, de Salazar e Franco a Adolf Hitler. Também Napoleão Bonaparte foi grande admirador de Maquiavel, tendo mesmo publicado uma edição anotada de ‘O Príncipe’.

Altos dignitários da Igreja chegaram a escrever que o livro de Nicolau Maquiavel fora escrito pela mão de Satanás. E porquê? Porque o conceito de moralidade está ausente do pensamento do teórico florentino, para quem era claro que um homem esquece mais depressa a morte do pai do que a perda do património. Nesse sentido, ‘O Príncipe’ é um tratado sobre o cinismo e o pragmatismo da política.

É interessante constatar que esta efeméride passou praticamente despercebida, designadamente na Itália onde Maquiavel nasceu e onde a vida política se transformou num imenso circo onde pontificam palhaços, comediantes de feira e outras figuras que tornam aberrante o jogo democrático, sobretudo se o deixam refém de populismos, demagogias e absolutas faltas de respeito pelo interesse colectivo.

Por outro lado, poderá dizer-se que a Europa da União, no difícil equilíbrio entre países ricos e pobres, poderosos e fracos, representa cada vez a concretização prática do pensamento de Maquiavel e não de Erasmo, porque permite que, sem escrúpulos ou reservas morais, se condenem à marginalização e ao empobrecimento aqueles que não cabem nos conceitos de solidariedade e entreajuda que cada vez menos valor e significado têm entre Estados que cobiçam e condicionam a soberania dos outros.

Se Maquiavel ainda fizesse parte do número dos vivos não teria dificuldade em ser festejado, celebrado e contratado como consultor e assessor, embora tudo me leve a crer que nunca chegaria tão longe como os aberrantes teóricos do ultraliberalismo. Ele tinha outra dimensão e grandeza.

Entretanto, proliferam os políticos transformados em comentadores televisivos que ainda não perceberam que, em regra, Maquiavel nunca consegue tornar-se Príncipe, mesmo que todas as semanas entre nas nossas casas, anos a fio.

A verdade é que Nicolau Maquiavel escreveu noutra época e com base noutros conceitos, regras e visões do poder. Mas o que continua a ter de mais actual e interessante é a forma como sintetizou aquilo que mais profundamente caracteriza a natureza humana quando é poder, a sua conquista e manutenção que estão em causa.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Uma viagem para Lucca


Maquiavel visita em missão diplomática a pequena cidade e escreve um elogio à sua vida política, em que a administração mundana e a justiça eram atividades separadas.

Em 1520, sete anos após escrever O príncipe, Nicolau Maquiavel foi contratado pelo novo líder de Florença, Júlio de Médici (1478-1534), para compor uma história da cidade e trabalhar em sua diplomacia. Uma de suas primeiras missões foi uma viagem oficial à pequena cidade de Lucca, sobre a qual ele escreveu dois textos.
O primeiro é uma biografia do condottieri toscano e libertador de Lucca no começo do século 14, Castruccio Castracani. Ensaio de exaltação do herói, o texto encontrou rápida fortuna crítica e a edição italiana de 1550 de O príncipe já vinha acompanhada de A vida de Castruccio Castracani de Lucca. Mary Shelley, autora de Frankenstein, recontaria essa história três séculos mais tarde em Valperga: or The life and adventures of Castruccio, prince of Lucca (1823).
O segundo texto, intitulado Sommario delle cose della citta di Lucca (Sumário das coisas da cidade de Lucca), é um breve ensaio sobre a vida política local. Na pequena cidade liberta por Castracani, governava uma senhoria de nove magistrados, além de trêsgonfaloneiros de justiça – algo intermediário entre o que seria hoje um prefeito e um xerife, cada um advindo de um dos três condados que compunham a cidade.
Junto a esta senhoria, um conselho de 36 cidadãos, com mandato de seis meses, exercia funções eletivas, auxiliando na designação dos ocupantes de funções públicas e na eleição de um conselho de 72 cidadãos, com funções bem mais amplas e mandato de um ano. O mandato da senhoria era de dois meses, vedada a reeleição.
A estrutura administrativa de cada condado da cidade estava sob o domínio da senhoria, mas a cidade como um todo, e seus cidadãos, não
Ao descrever o papel político da instituição da senhoria em Lucca, Maquiavel afirma que ela “é como um primeiro motor de todas as ações que se promovem no governo da cidade”. A sua autoridade “sobre o seu condado é amplíssima; sobre os cidadãos é nula”. Ou seja, a estrutura administrativa de cada condado da cidade estava sob o domínio da senhoria, mas a cidade como um todo, e seus cidadãos, não.
Estes, argumenta Maquiavel, estavam sob o jugo direto de um outro órgão, o conselho geral, composto por 72 cidadãos, eleito pela senhoria e por 12 pessoas escolhidas pelo conselho dos 36. Segundo Maquiavel, este conselho geral “é o príncipe da cidade”, “faz e desfaz as leis”, “exila e mata cidadãos”; enfim, “não há apelo possível nem nada que o freie”. Tratava-se de um poder legislativo na pequena república. Com amplos poderes sobre os cidadãos, judiciais e policiais inclusive – até mesmo os condottieri, mistura de chefe de polícia e líder militar, eram escolhidos por eles.
Castruccio Castracani
Maquiavel escreveu a biografia de Castruccio Castracani (1281-1328), libertador de Lucca, 'príncipe em todo o gênero de fortuna'. A escritora Mary Shelley também se interessou pelo personagem, em torno do qual construiu o romance histórico 'Valperga' (1823), em que narra sua vida e aventuras. (imagem: Biblioteca Statale di Lucca)

Maquiavel parece particularmente interessado neste ‘pequeno’ detalhe da organização da república de Lucca. De um lado, um poder executivo, um primeiro motor que se autoinstitui, mas cujo poder não extrapola os limites da administração interna e da diplomacia da cidade, e cujos mandatos, de tão efêmeros, tornam a corrupção improvável.

Do outro lado, o conselho geral, um poder legislativo instituído pela senhoria e por um conselho autoinstituído de 36 cidadãos, detinha poderes tão extensos que ele afirma se tratar do “verdadeiro príncipe” da cidade. Príncipe? Ora, Lucca era uma república!


Poderes separados

O príncipe é uma obra silenciosa acerca da separação de poderes. Nela, o conceito medieval de signoria é reinterpretado para conformar a necessidade dos líderes de principados novos de obter a aquiescência dos cidadãos e da nobreza de suas cidades.
Ao descrever o conselho geral de Lucca como “verdadeiro príncipe”, em contraposição ao corpo detentor de signoria, “o primeiro motor”, Maquiavel parece admitir que, 200 anos depois da libertação por Castruccio Castracani, Lucca já não é mais principado novo, e que as regras por ele elaboradas para um príncipe novo não se aplicavam.
Na pequena Lucca, a administração das coisas da cidade e a administração da justiça para os cidadãos eram atividades separadas
Na pequena Lucca, a administração das coisas da cidade e a administração da justiça para os cidadãos eram atividades separadas. Poderes separados. O rodízio nas funções, no exercício de poderes executivos, de um lado, ou de poderes judiciais e legislativos, de outro, era tão acelerado – dois meses, seis meses, um ano, dois anos – que assegurava que ninguém ocupasse posto de mando ou assento no “verdadeiro príncipe” por tempo demasiado.
Esta era a forma (nem tão) sutil com que oslucchesi demonstravam sua desconfiança da virtude dos homens e depositavam sua confiança na perenidade de decisões e leis produzidas desinteressadamente por oficiais prestes a sair – sem poder voltar – do cargo que exercem.
Lucca
A estrutura administrativa de Lucca – aqui em imagem de Giovanni Sercambi (1348-1424) – foi analisada por Maquiavel, que comparou seu conselho geral a um 'verdadeiro príncipe'. (imagem: Wikimedia Commons)
O elogio de Maquiavel à vida política de Lucca denuncia algo frequentemente negligenciado pelos intérpretes de O príncipe. Para ele, a gramática da política, no momento da fundação de uma nova república, exige homens com virtú, como Castracani e seu ídolo florentino Cesare Borgia.
Mas, no momento de reprodução da vida republicana, no esforço de proteger a república da corrupção interna e da conquista externa, a gramática da política depende menos da virtude dos homens e mais da virtude das leis, este “grande freio para os homens”, nas palavras de Maquiavel.

Fonte: CienciaHoje