MAQUIAVEL – Antes de experimentar os golpes dos guerreiros ultramontanos, eles acreditavam que para um príncipe bastava saber, em seu gabinete, imaginar uma resposta mordaz, escrever uma bela carta, fazer ostentação em suas conversas e discursos de sutileza e vivacidade; que lhes bastava saber urdir um estratagema, adornar-se de ouro e pedrarias, dormir e comer mais esplendidamente do que os outros, cercar-se de libertinagem, comportar-se em relação aos seus súditos com avareza e soberba, estagnar-se na ociosidade, conceder os postos do exército como favor, desprezar os conselhos louváveis, exigir que suas palavras fossem recebidas como oráculos. Eles não percebiam, os infelizes, que se preparavam assim para tornar-se presa do primeiro assaltante.
VEJA – O senhor denuncia a falta de preparo militar dos governantes, mas, como diplomata, acaba de ser muito bem-sucedido ao negociar com a França uma solução pacífica para a guerra entre Florença e Pisa. Afinal, o que é melhor: negociar ou pegar em armas?
MAQUIAVEL – Há duas maneiras de combater: uma, segundo as leis; a outra, pela força. A primeira forma é própria dos homens, a segunda é própria dos animais. Mas, como a primeira freqüentemente não basta, é preciso recorrer à segunda. Não há lei nem Constituição que possa pôr um freio à corrupção universal.
VEJA – Qual a sua opinião sobre os governos que, em vez de se envolver em guerras, adotam a política da neutralidade?
MAQUIAVEL – Muito embora eu ouça louvar por toda parte a política da neutralidade, não posso aprová-la. Em toda minha experiência dos negócios públicos e em tudo o que li sobre história não consigo me lembrar de um só caso em que a política da neutralidade tenha sido vantajosa. Pelo contrário, tais políticas sempre são desastrosas e levam direto à ruína.
VEJA – O governante empenhado em conduzir políticas acertadas deve ter isso sempre em mente?
MAQUIAVEL – Não imagine nunca nenhum governo poder tomar decisões absolutamente certas; pense antes em ter de tomá-las sempre incertas, pois isso está na ordem das coisas que nunca deixam, quando se procura evitar algum inconveniente, de operar um outro. A prudência está justamente em conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo o bom.
VEJA – Muitas vezes, nessa tentativa de fazer o certo, os governantes passam por cima da Constituição. Funciona?
MAQUIAVEL – Em um Estado bem constituído, qualquer que seja o acontecimento que surja, não se deve ser obrigado a recorrer a medidas extraordinárias; porque, se as medidas extraordinárias fazem bem no momento, seu exemplo traz um mal real. O hábito de violar a Constituição para fazer o bem autoriza, em seguida, a violá-la para disfarçar o mal.
VEJA – Na prática, que o senhor conhece tão bem, é comum mexer na Constituição. Qual o modo menos traumático de fazê-lo?
MAQUIAVEL – Quem quiser mudar a Constituição de um Estado livre, de maneira que essa modificação seja bem-vinda e se possa manter com a aprovação de todos, deve salvaguardar, ao menos, a sombra das formas antigas, a fim de que o povo pouco se aperceba das mudanças, mesmo se as novas instituições sejam totalmente estranhas aos antigos; porque os homens se alimentam tanto de aparência como de realidade; muitas vezes, a aparência os impressiona mais que a realidade.
VEJA – Uma boa Constituição basta para garantir a liberdade?
MAQUIAVEL – Em toda república existem dois partidos, o dos aristocratas e o do povo; e as leis que favorecem a liberdade resultam da luta desses partidos um contra o outro. Todos os legisladores que redigiram constituições sábias para repúblicas sempre julgaram essencial estabelecer uma proteção à liberdade; e, conforme a maior ou menor habilidade com que essa proteção foi criada, a liberdade durou mais ou menos. As graves e naturais inimizades que existem entre as pessoas do povo e os nobres, causadas porque estes querem mandar e aqueles não querem obedecer, são os motivos de todos os males que surgem nas cidades, porque dessa diversidade de humores se nutrem todas as outras coisas que perturbam as repúblicas.
VEJA – Uma vez conquistada a liberdade, a quem se deve confiar sua guarda: às elites ou ao povo?
MAQUIAVEL – Na minha opinião, qualquer encargo deve sempre ser confiado a quem tenha menos inclinação a fraudá-lo. Quando o povo recebe o encargo de velar pela liberdade, ele, sendo menos inclinado a invadi-la, dará necessariamente melhor conta da incumbência; e, também, sendo incapaz de violá-la ele próprio, melhor impedirá que outros o façam.
VEJA – Ainda que para isso o povo questione as instituições?
MAQUIAVEL – A quem me disser que a grita constante do povo contra o Senado, a indisposição do Senado contra o povo, as correrias nas ruas e mesmo, em certos casos, a fuga dos habitantes da cidade para escapar aos tumultos – a quem me disser que tais fatos são meios bem estranhos de atingir um fim conveniente responderei que esses mesmos fatos só podem assustar os que apenas os vêem e que todo Estado livre deve dar ao povo uma válvula, por assim dizer, para as suas ambições.
VEJA – E quando os protestos populares geram violência?
MAQUIAVEL – Quem se der ao trabalho de examinar com cuidado os resultados daquelas agitações verá que elas jamais foram causa de violências ou de quaisquer prejuízos ao bem geral e se convencerá de que, pelo contrário, elas deram de fato origem a leis vantajosas para as liberdades públicas.
VEJA – Há, nas universidades de hoje, modelos teóricos de sociedades mais justas e igualitárias. O senhor acredita que a humanidade construirá um mundo melhor?
MAQUIAVEL – O que eu não sei, embora gostasse de saber, é exatamente quando uma determinada política pode ajudar e quando pode prejudicar. O paladar é ofendido pelas coisas amargas, mas tampouco lhe agradam as doces demais. De modo que os homens se cansam do bem, do mesmo modo que se irritam com o mal.
VEJA – Apesar de crítico da Igreja, o senhor não vê nenhuma atuação positiva em termos de melhorar as coisas desse mundo?
MAQUIAVEL – Se, nos inícios da república cristã, a religião tivesse permanecido fiel aos princípios de seu fundador, os Estados e as repúblicas da cristandade seriam mais unidos e bem mais felizes. Não há melhor indício de seu declínio do que o fato de que os povos mais próximos da Igreja de Roma, líder da nossa religião, é que são os menos religiosos. A ponto de que, se confrontarmos os princípios que presidiram a sua criação e o uso que é feito deles hoje, julgaremos próxima a hora da sua ruína ou da calamidade.
VEJA – Mas a religiosidade não é um fator importantíssimo para o povo italiano?
MAQUIAVEL – Em virtude dos maus exemplos que lhe vêm de Roma, a Itália perdeu toda a devoção e todo o sentimento religioso, o que dá origem a uma infinidade de desregramentos e de desordens: porque, assim como a presença da religião pressupõe todo tipo de bem, sua ausência dá a entender o contrário. Nós temos portanto, nós, italianos, uma primeira dívida para com a Igreja e os padres: a de termos perdido todo o sentimento religioso e de nos termos tornado maus. Mas nós lhe devemos outra coisa, ainda mais importante, e que é a segunda das causas de nossa ruína: terem mantido e manterem sempre o nosso país dividido.
VEJA – Como a Igreja tem contribuído para a fragmentação política da Itália?
MAQUIAVEL – Jamais país algum viveu unido e próspero se não foi submetido inteiramente, como a França e a Espanha, a um só governo: república ou monarquia. E, se a Itália não chegou a isso e não se encontra igualmente unida sob a autoridade de uma só república ou de um só príncipe, a única responsável é a Igreja. Ela conseguiu instalar-se na península e aí deteve um poder temporal. Mas, por um lado, ela não foi nem bastante poderosa nem bastante hábil para impor sua supremacia e assegurar-se da soberania; e, por outro, nunca foi tão fraca a ponto de que o temor de perder o seu domínio temporal a dissuadisse de chamar uma potência estrangeira em seu socorro contra um outro Estado italiano que se tornara, na sua opinião, poderoso demais.
VEJA – Não há um pouco de exagero em culpar a Igreja romana por tantos problemas dos italianos?
MAQUIAVEL – Para convencer as pessoas prontamente, pela experiência, da verdade das minhas afirmações, seria preciso mandar a corte de Roma, com a autoridade que goza na Itália, residir no território dos suíços, o único povo que, em matéria de religião e de disciplina militar, permaneceu fiel aos costumes antigos. Ver-se-ia em pouco tempo os costumes censuráveis dessa corte causarem aí mais distúrbios do que qualquer outro acidente jamais pôde produzir na história desse país.
VEJA – Qual conselho fundamental o senhor daria a um governante?
MAQUIAVEL – É preciso fazer todo o mal de uma só vez a fim de que, provado em menos tempo, pareça menos amargo, e o bem pouco a pouco, a fim de que seja mais bem saboreado.
VEJA – É recomendável cooptar antigos adversários?
MAQUIAVEL – Os príncipes, e particularmente os príncipes novos, têm encontrado muito mais fidelidade entre os homens que, no início do seu principado, foram considerados suspeitos do que entre aqueles nos quais eles tinham inicialmente confiado. Os homens que, no início do seu principado, haviam sido seus inimigos e cuja condição é tal que para manter-se têm necessidade de apoio, estes o príncipe poderá sempre ganhar para a sua causa com grande facilidade.
VEJA –Para um governante, é preferível ser temido ou amado?
MAQUIAVEL – Eu respondo que é necessário ser um e outro; mas, como é bem difícil reunir as duas condições, é mais seguro se fazer temer que amar. Porque o amor se mantém por um vínculo de obrigações que, já que os homens são pérfidos, é rompido quando se ofereça ocasião de proveito particular; mas o temor se mantém por um receio de castigo, que não se abandona jamais.
Fonte: Revista Veja