quinta-feira, 4 de junho de 2009

Paul Larivaille: a Itália de Maquiavel

Em sua obra, o francês contextualiza o pensamento maquiavélico, trazendo à tona - e explicando - o mundo que gerou o autor de O Príncipe, o fundador da ciência política

por Rodrigo Cavalcante

O italiano Nicolau Maquiavel não viveu muito. Nasceu em 1469 e morreu em 1527. Em pouco mais de meio século de existência, no entanto, revolucionou o pensamento político. Ele olhou para o mundo a sua volta e criou uma nova ciência, a ciência política. Quando Maquiavel tinha 17 anos, Botticelli acabava de pintar o Nascimento de Vênus. Quando fez 23, Cristóvão Colombo descobria a América. Aos 37, Leonardo Da Vinci finalizava a Monaliza. Quando completou 34, Michelangelo acabava seu Davi. Além de todos esses gênios serem italianos, como Maquiavel, tinham outra coisa em comum: eram financiados por banqueiros como os Medici, cujas filiais se espalhavam de Veneza a Londres, no início do que viria a ser chamado, cinco séculos depois, de economia global.

Por trás dessa Itália renascentista, porém, escondia-se outra península, marcada pela violência, corrupção, assassinatos políticos e escândalos sexuais envolvendo até papas. Sem levar em conta a turbulência do período, não há como entender a natureza dos conselhos de Maquiavel em O Príncipe – clássico do pensamento político ocidental. Fora de contexto, a obra, espécie de manual realista de auto-ajuda para governantes, parece cruel – ou “maquiavélica”, termo que virou sinônimo de qualquer trama ardilosa para se atingir um objetivo. Poucos se dão conta de que durante a vida de Maquiavel a própria Itália não existia. E esse é o tema do livro A Itália no Tempo de Maquiavel, do pensador político francês Paul Larivaille.

Em 1469, data do nascimento de Nicolau Maquiavel, a Itália ainda não era um país, mas um aglomerado de Estados, com tamanhos diferentes, formas de governos distintas e até culturalmente diversos. Cinco grandes Estados ditavam os destinos da península: o Reino de Nápoles, os Estados Pontifícios (que englobavam Roma), o Ducado de Milão, a República de Veneza e o Estado Florentino, onde nasceu o pensador político. Em torno dessas potências, aglutinavam-se Estados menores. Essa falta de unidade provocava um clima de insegurança na região. As quedas de governos eram comuns e, como nenhum dos governos tinha força suficiente para subjugar os demais em torno de um poder único, a península terminava sendo presa fácil para potências como a Espanha e a França – essa última invadiu Florença, em 1494. Para piorar a situação, os exércitos constituíam-se por mercenários corruptos.

Mas se a Itália não era um país, como então falar de uma Itália no tempo de Maquiavel? Segundo o historiador Paul Larivaille, os povos da península, apesar das diferenças, compartilhavam de um passado comum: eram os herdeiros da civilização romana, considerada fonte de cultura e arte de viver. Na época, prevalecia o sentimento de que para reviver o legado de Roma bastava apenas libertar a criatividade de pensadores e artistas das amarras do “sono medieval”. Para tal tarefa, entrou em cena a nova elite de mercadores e banqueiros. As companhias florentinas do século 15 encarnaram o papel de financiadoras da arte. De acordo com o diário de um viajante, em 1472, a cidade já tinha 33 bancos “com balcão e tapete no exterior que efetuam operações tanto de câmbio quanto comerciais”. Algumas dessas companhias, como as que pertenciam à família Medici, firmaram sua reputação com agências em cidades como Roma, Londres, Veneza e Avignon.

Inicialmente, tais bancos surgiram para facilitar as transações comerciais que envolviam moedas diferentes, lucrando com a taxa de câmbio. Mas rapidamente perceberam que podiam lucrar mais participando do comércio e financiando empreendimentos internacionais. O negócio funcionava assim: se um mercador quisesse fazer uma viagem comercial à Índia, por exemplo, a companhia levantava o capital, dividindo o valor em cotas. Caso a viagem fosse bem-sucedida, os donos das cotas não apenas recuperavam o investimento, como ficavam com três quartos dos ganhos. Em meio às turbulentas epopéias marítimas da época, quando navios eram expostos a intempéries climáticas e à cobiça dos piratas, tratava-se de um investimento de risco. Para compensar os riscos, companhias como a dos Medici, engrossavam o patrimônio com negócios sólidos, como imóveis e indústrias. E, para perpetuar seu nome, as famílias começaram a investir, também, em arte.

Artistas e mecenas

Na Idade Média, não existia diferença entre arte e artesanato. Isso só mudou quando os ricos passaram a disputar o trabalho dos mais talentosos profissionais da época. Com o patrocínio da nobreza italiana, muitos pintores desvencilharam-se de obrigações menores para se concentrar em sua obra. O resultado foi a ascensão de nomes como Brunelleschi, Rafael, Donatello, Botticelli, Leonardo Da Vinci e Michelangelo, fazendo surgir dois novos personagens na sociedade: o mecenas e o artista. Em 1470, a cidade de Florença, por exemplo, contava com 31 ateliês de pintores, 26 de escultores e mais de 30 oficinas de ourives – número igual ao de casas bancárias. É verdade que até a primeira metade do século 15, eram poucos os artistas tratados com distinção.

Só na segunda metade do século 15 os artistas, de fato, alcançaram o posto de celebridades. Foi o caso de Botticelli (1445-1510). Sob a proteção dos Medici, ele criou um novo estilo: utilizava temas sagrados, como na tela Adoração dos Magos, mas representava os personagens com retratos de florentinos. Rafael (1423-1520) caiu nas graças da Igreja Romana e logo passou a ser admirado fora do Vaticano. Leonardo Da Vinci (1452-1519) conseguia inúmeras encomendas apesar da reputação de inconstante. Mas foi Michelangelo (1475-1564) o artista que melhor encarnou o momento. Mimado pelos Medici e pela Igreja, desprezava a amizade de príncipes e papas para se concentrar em sua arte “divina”. Um poder impensável para os artistas que o precederam.

Politicamente, a Itália de Maquiavel distinguia-se do resto da Europa. A norma eram monarquias em que reis representavam Deus na Terra. Mas, na maior parte da península (com exceção do reino de Nápoles e dos Estados Pontifícios), cidades-estados tinham regimes tão avançados que incluíam até repúblicas, como a de Florença, em que famílias tradicionais disputavam o poder. Só que, para conquistar tal poder, a família tinha de dominar os meandros de um sistema político complexo. Como os mandatos eleitorais variavam entre 2 e 4 meses, cerca de 150 pessoas revezavam-se no governo de uma cidade num único ano. A rotatividade, no entanto, não significava diversidade no comando. Só podiam votar ou se candidatar cidadãos abastados ou tradicionais. Além disso, sob a fachada de um regime democrático, o poder concentrava-se nas mãos das famílias poderosas , que interfeririam no processo eleitoral. O sucesso político dependia de sorte e astúcia para se esquivar das ardilosas conspirações, incluindo emboscadas e assassinatos em locais públicos.

Na Itália de Maquiavel, assassinatos e escândalos sexuais aconteciam até no Vaticano. Segundo Paul Johnson, os papas da Renascença eram vistos mais como príncipes pecadores do que como líderes espirituais. O papa Alexandre VI, por exemplo, teve uma vida tão devassa que promoveu o irmão de uma de suas amantes ao posto de cardeal. As conspirações articuladas por sua família, os Borgia, tornariam-se folclóricas. Alexandre VI casou e descasou sua filha Lucrécia Borgia para aumentar seu patrimônio e tramava envenenamentos em conluio com o filho, César Borgia. Os Medici também “elegeram” papas da família: em 1513, Giovano de Medici, filho de Lourenço de Medici, tornou-se Leão X, cujo pontificado seria marcado pela ascensão de familiares aos postos importantes do Vaticano. Apesar da bandalheira, a vaidade papal serviu de motor para a execução de alguns dos maiores monumentos artísticos da civilização ocidental, da Capela Sistina à Basílica de São Pedro. Se os próprios papas agiam como estadistas sem ética em busca do poder, como deveria agir um príncipe para manter-se soberano?

A política como ela é

Maquiavel é considerado o fundador da ciência política justamente por tentar responder a pergunta acima de maneira realista: em sua obra, ele trata o jogo do poder como ele é – e não como deveria ser. O florentino confrontou o idealismo de pensadores da Grécia antiga, como Aristóteles, e de filósofos medievais, como Santo Agostinho. Fez isso valendo-se de sua experiência na chancelaria da administração pública de Florença, onde o que viu era diferente do que lia. Concluiu que a política não era tarefa para idealistas. E, sim, para príncipes dotados de astúcia, sagacidade e violência. Segundo o ensaísta americano Isaiah Berlin, Maquiavel apenas escancarou o óbvio: a ética cristã da compaixão nem sempre era compatível com a ética do Estado. Ou seja: o soberano que quisesse manter a paz e proteger seu principado teria que agir como raposa. Tudo para enfrentar os caprichos da Fortuna, a deusa pagã representada por uma mulher girando uma enorme roda em que homens ora estavam em cima, ora em baixo: a roda da Fortuna.

No final de sua vida, ironicamente, a Fortuna quis que Nicolau Maquiavel não fosse reconhecido por seu trabalho. Por ter ocupado cargos na administração florentina no período em que os Medici haviam sido expulsos da cidade, ele perdera o seu posto na chancelaria assim que a poderosa família voltou ao poder, em 1512. A partir daí, viveu no campo. Pela manhã, jogava cartas com lenhadores e homens simples. À noite, trocava as roupas enlameadas pelos trajes oficiais e se dirigia ao gabinete de trabalho onde lia, escrevia e dizia encontrar-se “com os homens da Antigüidade”. Foi dessas “conversas” que nasceria o clássico O Príncipe. Dedicado a Lorenço de Medici, a obra nasceu de uma tentativa do pensador de voltar ao governo. Lourenço não entendeu o recado, e Maquiavel morreu, em 1527, longe do poder.

Livro

A Itália no Tempo de Maquiavel, Paul Larivaille, Companhia das Letras, 1991. R$ 44

Fonte: Historia.abril

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