quinta-feira, 18 de junho de 2009

O pensador florentino aponta erros dos governos fracos e diz como funciona a política por dentro

Aos 32 anos e há três ocupando o cargo de secretário do conselho de segurança do governo de Florença, Nicolau Maquiavel é hoje mais que um personagem-chave da diplomacia européia. Tem-se revelado um fenomenal pensador dos problemas de Estado. "É impossível que uma república permaneça tranqüila, gozando de liberdade dentro de suas fronteiras. Se não molestar as demais, será molestada por elas", sustenta. Alguns analistas detectam nas idéias do florentino o embrião de uma nova ciência, na qual a teoria política, baseada na realidade dos fatos, existiria como disciplina autônoma, separada da moral e da religião. Outros vêem nesse praticante polemista sem meias palavras não mais que um oportunista, cujo talento serve para fornecer aos governantes ferramentas que garantam sua manutenção no poder. Com tanta controvérsia, suas idéias, expostas nesta entrevista, estão destinadas a alimentar discussões acaloradas por muito tempo.

VEJA – Qual a responsabilidade dos governantes italianos diante da recente onda de invasões estrangeiras que assolou a península?
MAQUIAVEL – Antes de experimentar os golpes dos guerreiros ultramontanos, eles acreditavam que para um príncipe bastava saber, em seu gabinete, imaginar uma resposta mordaz, escrever uma bela carta, fazer ostentação em suas conversas e discursos de sutileza e vivacidade; que lhes bastava saber urdir um estratagema, adornar-se de ouro e pedrarias, dormir e comer mais esplendidamente do que os outros, cercar-se de libertinagem, comportar-se em relação aos seus súditos com avareza e soberba, estagnar-se na ociosidade, conceder os postos do exército como favor, desprezar os conselhos louváveis, exigir que suas palavras fossem recebidas como oráculos. Eles não percebiam, os infelizes, que se preparavam assim para tornar-se presa do primeiro assaltante.

VEJA – O senhor denuncia a falta de preparo militar dos governantes, mas, como diplomata, acaba de ser muito bem-sucedido ao negociar com a França uma solução pacífica para a guerra entre Florença e Pisa. Afinal, o que é melhor: negociar ou pegar em armas?
MAQUIAVEL – Há duas maneiras de combater: uma, segundo as leis; a outra, pela força. A primeira forma é própria dos homens, a segunda é própria dos animais. Mas, como a primeira freqüentemente não basta, é preciso recorrer à segunda. Não há lei nem Constituição que possa pôr um freio à corrupção universal.

VEJA – Qual a sua opinião sobre os governos que, em vez de se envolver em guerras, adotam a política da neutralidade?
MAQUIAVEL – Muito embora eu ouça louvar por toda parte a política da neutralidade, não posso aprová-la. Em toda minha experiência dos negócios públicos e em tudo o que li sobre história não consigo me lembrar de um só caso em que a política da neutralidade tenha sido vantajosa. Pelo contrário, tais políticas sempre são desastrosas e levam direto à ruína.

VEJA – O governante empenhado em conduzir políticas acertadas deve ter isso sempre em mente?
MAQUIAVEL – Não imagine nunca nenhum governo poder tomar decisões absolutamente certas; pense antes em ter de tomá-las sempre incertas, pois isso está na ordem das coisas que nunca deixam, quando se procura evitar algum inconveniente, de operar um outro. A prudência está justamente em conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo o bom.

VEJA – Muitas vezes, nessa tentativa de fazer o certo, os governantes passam por cima da Constituição. Funciona?
MAQUIAVEL – Em um Estado bem constituído, qualquer que seja o acontecimento que surja, não se deve ser obrigado a recorrer a medidas extraordinárias; porque, se as medidas extraordinárias fazem bem no momento, seu exemplo traz um mal real. O hábito de violar a Constituição para fazer o bem autoriza, em seguida, a violá-la para disfarçar o mal.

VEJA – Na prática, que o senhor conhece tão bem, é comum mexer na Constituição. Qual o modo menos traumático de fazê-lo?
MAQUIAVEL – Quem quiser mudar a Constituição de um Estado livre, de maneira que essa modificação seja bem-vinda e se possa manter com a aprovação de todos, deve salvaguardar, ao menos, a sombra das formas antigas, a fim de que o povo pouco se aperceba das mudanças, mesmo se as novas instituições sejam totalmente estranhas aos antigos; porque os homens se alimentam tanto de aparência como de realidade; muitas vezes, a aparência os impressiona mais que a realidade.

VEJA – Uma boa Constituição basta para garantir a liberdade?
MAQUIAVEL – Em toda república existem dois partidos, o dos aristocratas e o do povo; e as leis que favorecem a liberdade resultam da luta desses partidos um contra o outro. Todos os legisladores que redigiram constituições sábias para repúblicas sempre julgaram essencial estabelecer uma proteção à liberdade; e, conforme a maior ou menor habilidade com que essa proteção foi criada, a liberdade durou mais ou menos. As graves e naturais inimizades que existem entre as pessoas do povo e os nobres, causadas porque estes querem mandar e aqueles não querem obedecer, são os motivos de todos os males que surgem nas cidades, porque dessa diversidade de humores se nutrem todas as outras coisas que perturbam as repúblicas.

VEJA – Uma vez conquistada a liberdade, a quem se deve confiar sua guarda: às elites ou ao povo?
MAQUIAVEL – Na minha opinião, qualquer encargo deve sempre ser confiado a quem tenha menos inclinação a fraudá-lo. Quando o povo recebe o encargo de velar pela liberdade, ele, sendo menos inclinado a invadi-la, dará necessariamente melhor conta da incumbência; e, também, sendo incapaz de violá-la ele próprio, melhor impedirá que outros o façam.

VEJA – Ainda que para isso o povo questione as instituições?
MAQUIAVEL – A quem me disser que a grita constante do povo contra o Senado, a indisposição do Senado contra o povo, as correrias nas ruas e mesmo, em certos casos, a fuga dos habitantes da cidade para escapar aos tumultos – a quem me disser que tais fatos são meios bem estranhos de atingir um fim conveniente responderei que esses mesmos fatos só podem assustar os que apenas os vêem e que todo Estado livre deve dar ao povo uma válvula, por assim dizer, para as suas ambições.

VEJA – E quando os protestos populares geram violência?
MAQUIAVEL – Quem se der ao trabalho de examinar com cuidado os resultados daquelas agitações verá que elas jamais foram causa de violências ou de quaisquer prejuízos ao bem geral e se convencerá de que, pelo contrário, elas deram de fato origem a leis vantajosas para as liberdades públicas.

VEJA – Há, nas universidades de hoje, modelos teóricos de sociedades mais justas e igualitárias. O senhor acredita que a humanidade construirá um mundo melhor?
MAQUIAVEL – O que eu não sei, embora gostasse de saber, é exatamente quando uma determinada política pode ajudar e quando pode prejudicar. O paladar é ofendido pelas coisas amargas, mas tampouco lhe agradam as doces demais. De modo que os homens se cansam do bem, do mesmo modo que se irritam com o mal.

VEJA – Apesar de crítico da Igreja, o senhor não vê nenhuma atuação positiva em termos de melhorar as coisas desse mundo?
MAQUIAVEL – Se, nos inícios da república cristã, a religião tivesse permanecido fiel aos princípios de seu fundador, os Estados e as repúblicas da cristandade seriam mais unidos e bem mais felizes. Não há melhor indício de seu declínio do que o fato de que os povos mais próximos da Igreja de Roma, líder da nossa religião, é que são os menos religiosos. A ponto de que, se confrontarmos os princípios que presidiram a sua criação e o uso que é feito deles hoje, julgaremos próxima a hora da sua ruína ou da calamidade.

VEJA – Mas a religiosidade não é um fator importantíssimo para o povo italiano?
MAQUIAVEL – Em virtude dos maus exemplos que lhe vêm de Roma, a Itália perdeu toda a devoção e todo o sentimento religioso, o que dá origem a uma infinidade de desregramentos e de desordens: porque, assim como a presença da religião pressupõe todo tipo de bem, sua ausência dá a entender o contrário. Nós temos portanto, nós, italianos, uma primeira dívida para com a Igreja e os padres: a de termos perdido todo o sentimento religioso e de nos termos tornado maus. Mas nós lhe devemos outra coisa, ainda mais importante, e que é a segunda das causas de nossa ruína: terem mantido e manterem sempre o nosso país dividido.

VEJA – Como a Igreja tem contribuído para a fragmentação política da Itália?
MAQUIAVEL – Jamais país algum viveu unido e próspero se não foi submetido inteiramente, como a França e a Espanha, a um só governo: república ou monarquia. E, se a Itália não chegou a isso e não se encontra igualmente unida sob a autoridade de uma só república ou de um só príncipe, a única responsável é a Igreja. Ela conseguiu instalar-se na península e aí deteve um poder temporal. Mas, por um lado, ela não foi nem bastante poderosa nem bastante hábil para impor sua supremacia e assegurar-se da soberania; e, por outro, nunca foi tão fraca a ponto de que o temor de perder o seu domínio temporal a dissuadisse de chamar uma potência estrangeira em seu socorro contra um outro Estado italiano que se tornara, na sua opinião, poderoso demais.

VEJA – Não há um pouco de exagero em culpar a Igreja romana por tantos problemas dos italianos?
MAQUIAVEL – Para convencer as pessoas prontamente, pela experiência, da verdade das minhas afirmações, seria preciso mandar a corte de Roma, com a autoridade que goza na Itália, residir no território dos suíços, o único povo que, em matéria de religião e de disciplina militar, permaneceu fiel aos costumes antigos. Ver-se-ia em pouco tempo os costumes censuráveis dessa corte causarem aí mais distúrbios do que qualquer outro acidente jamais pôde produzir na história desse país.

VEJA – Qual conselho fundamental o senhor daria a um governante?
MAQUIAVEL – É preciso fazer todo o mal de uma só vez a fim de que, provado em menos tempo, pareça menos amargo, e o bem pouco a pouco, a fim de que seja mais bem saboreado.

VEJA – É recomendável cooptar antigos adversários?
MAQUIAVEL – Os príncipes, e particularmente os príncipes novos, têm encontrado muito mais fidelidade entre os homens que, no início do seu principado, foram considerados suspeitos do que entre aqueles nos quais eles tinham inicialmente confiado. Os homens que, no início do seu principado, haviam sido seus inimigos e cuja condição é tal que para manter-se têm necessidade de apoio, estes o príncipe poderá sempre ganhar para a sua causa com grande facilidade.

VEJA –Para um governante, é preferível ser temido ou amado?
MAQUIAVEL – Eu respondo que é necessário ser um e outro; mas, como é bem difícil reunir as duas condições, é mais seguro se fazer temer que amar. Porque o amor se mantém por um vínculo de obrigações que, já que os homens são pérfidos, é rompido quando se ofereça ocasião de proveito particular; mas o temor se mantém por um receio de castigo, que não se abandona jamais.

Fonte: Revista Veja

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Conselhos maquiavélicos



No artigo "Senhor Presidente" (pág. 124 de VEJA), o cientista político Sérgio Abranches dirige uma espécie de carta aberta ao novo mandatário da República, inspirada nos conselhos seculares de Nicolau Maquiavel (1469-1527). Trata-se de uma grande oportunidade para você examinar com a garotada a trajetória do célebre pensador florentino, considerado o fundador da ciência política moderna — e, segundo alguns, também o precursor do marketing eleitoral.

Destaque a frase: "Maquiavel era tudo menos maquiavélico". Proponha que os adolescentes interpretem o significado do jogo de palavras. Os dicionários registram maquiavélico como sinônimo de astuto, velhaco, ardiloso. Esse perfil foi atribuído a Maquiavel por causa da hipocrisia das elites, que faziam o que ele escrevia, mas não ousavam confessá-lo. Ensine que o pensador, republicano, defendia um projeto generoso — a unificação da Itália — e buscava um líder capaz de realizá-lo. No entanto, o país da bota só se tornou Estado no século XIX.

Pergunte sobre a validade dos conselhos de Maquiavel apresentados no artigo. O que a classe acha da lição segundo a qual o príncipe deve realizar malefícios de uma só vez, "para que, durando pouco tempo, marquem menos", enquanto os benefícios devem ser proporcionados "pouco a pouco, para serem melhor saboreados"? Ensine que o teórico da política sugere meios para um governante renascentista centralizar o poder e construir um Estado nacional, superando dessa forma a fragmentação e a anarquia características da Idade Média. É por isso que um marxista como o também italiano Antonio Gramsci considera O Príncipe, de Maquiavel, não uma obra amoral, mas um programa político da modernidade.


Fonte:História.abril

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Paul Larivaille: a Itália de Maquiavel

Em sua obra, o francês contextualiza o pensamento maquiavélico, trazendo à tona - e explicando - o mundo que gerou o autor de O Príncipe, o fundador da ciência política

por Rodrigo Cavalcante

O italiano Nicolau Maquiavel não viveu muito. Nasceu em 1469 e morreu em 1527. Em pouco mais de meio século de existência, no entanto, revolucionou o pensamento político. Ele olhou para o mundo a sua volta e criou uma nova ciência, a ciência política. Quando Maquiavel tinha 17 anos, Botticelli acabava de pintar o Nascimento de Vênus. Quando fez 23, Cristóvão Colombo descobria a América. Aos 37, Leonardo Da Vinci finalizava a Monaliza. Quando completou 34, Michelangelo acabava seu Davi. Além de todos esses gênios serem italianos, como Maquiavel, tinham outra coisa em comum: eram financiados por banqueiros como os Medici, cujas filiais se espalhavam de Veneza a Londres, no início do que viria a ser chamado, cinco séculos depois, de economia global.

Por trás dessa Itália renascentista, porém, escondia-se outra península, marcada pela violência, corrupção, assassinatos políticos e escândalos sexuais envolvendo até papas. Sem levar em conta a turbulência do período, não há como entender a natureza dos conselhos de Maquiavel em O Príncipe – clássico do pensamento político ocidental. Fora de contexto, a obra, espécie de manual realista de auto-ajuda para governantes, parece cruel – ou “maquiavélica”, termo que virou sinônimo de qualquer trama ardilosa para se atingir um objetivo. Poucos se dão conta de que durante a vida de Maquiavel a própria Itália não existia. E esse é o tema do livro A Itália no Tempo de Maquiavel, do pensador político francês Paul Larivaille.

Em 1469, data do nascimento de Nicolau Maquiavel, a Itália ainda não era um país, mas um aglomerado de Estados, com tamanhos diferentes, formas de governos distintas e até culturalmente diversos. Cinco grandes Estados ditavam os destinos da península: o Reino de Nápoles, os Estados Pontifícios (que englobavam Roma), o Ducado de Milão, a República de Veneza e o Estado Florentino, onde nasceu o pensador político. Em torno dessas potências, aglutinavam-se Estados menores. Essa falta de unidade provocava um clima de insegurança na região. As quedas de governos eram comuns e, como nenhum dos governos tinha força suficiente para subjugar os demais em torno de um poder único, a península terminava sendo presa fácil para potências como a Espanha e a França – essa última invadiu Florença, em 1494. Para piorar a situação, os exércitos constituíam-se por mercenários corruptos.

Mas se a Itália não era um país, como então falar de uma Itália no tempo de Maquiavel? Segundo o historiador Paul Larivaille, os povos da península, apesar das diferenças, compartilhavam de um passado comum: eram os herdeiros da civilização romana, considerada fonte de cultura e arte de viver. Na época, prevalecia o sentimento de que para reviver o legado de Roma bastava apenas libertar a criatividade de pensadores e artistas das amarras do “sono medieval”. Para tal tarefa, entrou em cena a nova elite de mercadores e banqueiros. As companhias florentinas do século 15 encarnaram o papel de financiadoras da arte. De acordo com o diário de um viajante, em 1472, a cidade já tinha 33 bancos “com balcão e tapete no exterior que efetuam operações tanto de câmbio quanto comerciais”. Algumas dessas companhias, como as que pertenciam à família Medici, firmaram sua reputação com agências em cidades como Roma, Londres, Veneza e Avignon.

Inicialmente, tais bancos surgiram para facilitar as transações comerciais que envolviam moedas diferentes, lucrando com a taxa de câmbio. Mas rapidamente perceberam que podiam lucrar mais participando do comércio e financiando empreendimentos internacionais. O negócio funcionava assim: se um mercador quisesse fazer uma viagem comercial à Índia, por exemplo, a companhia levantava o capital, dividindo o valor em cotas. Caso a viagem fosse bem-sucedida, os donos das cotas não apenas recuperavam o investimento, como ficavam com três quartos dos ganhos. Em meio às turbulentas epopéias marítimas da época, quando navios eram expostos a intempéries climáticas e à cobiça dos piratas, tratava-se de um investimento de risco. Para compensar os riscos, companhias como a dos Medici, engrossavam o patrimônio com negócios sólidos, como imóveis e indústrias. E, para perpetuar seu nome, as famílias começaram a investir, também, em arte.

Artistas e mecenas

Na Idade Média, não existia diferença entre arte e artesanato. Isso só mudou quando os ricos passaram a disputar o trabalho dos mais talentosos profissionais da época. Com o patrocínio da nobreza italiana, muitos pintores desvencilharam-se de obrigações menores para se concentrar em sua obra. O resultado foi a ascensão de nomes como Brunelleschi, Rafael, Donatello, Botticelli, Leonardo Da Vinci e Michelangelo, fazendo surgir dois novos personagens na sociedade: o mecenas e o artista. Em 1470, a cidade de Florença, por exemplo, contava com 31 ateliês de pintores, 26 de escultores e mais de 30 oficinas de ourives – número igual ao de casas bancárias. É verdade que até a primeira metade do século 15, eram poucos os artistas tratados com distinção.

Só na segunda metade do século 15 os artistas, de fato, alcançaram o posto de celebridades. Foi o caso de Botticelli (1445-1510). Sob a proteção dos Medici, ele criou um novo estilo: utilizava temas sagrados, como na tela Adoração dos Magos, mas representava os personagens com retratos de florentinos. Rafael (1423-1520) caiu nas graças da Igreja Romana e logo passou a ser admirado fora do Vaticano. Leonardo Da Vinci (1452-1519) conseguia inúmeras encomendas apesar da reputação de inconstante. Mas foi Michelangelo (1475-1564) o artista que melhor encarnou o momento. Mimado pelos Medici e pela Igreja, desprezava a amizade de príncipes e papas para se concentrar em sua arte “divina”. Um poder impensável para os artistas que o precederam.

Politicamente, a Itália de Maquiavel distinguia-se do resto da Europa. A norma eram monarquias em que reis representavam Deus na Terra. Mas, na maior parte da península (com exceção do reino de Nápoles e dos Estados Pontifícios), cidades-estados tinham regimes tão avançados que incluíam até repúblicas, como a de Florença, em que famílias tradicionais disputavam o poder. Só que, para conquistar tal poder, a família tinha de dominar os meandros de um sistema político complexo. Como os mandatos eleitorais variavam entre 2 e 4 meses, cerca de 150 pessoas revezavam-se no governo de uma cidade num único ano. A rotatividade, no entanto, não significava diversidade no comando. Só podiam votar ou se candidatar cidadãos abastados ou tradicionais. Além disso, sob a fachada de um regime democrático, o poder concentrava-se nas mãos das famílias poderosas , que interfeririam no processo eleitoral. O sucesso político dependia de sorte e astúcia para se esquivar das ardilosas conspirações, incluindo emboscadas e assassinatos em locais públicos.

Na Itália de Maquiavel, assassinatos e escândalos sexuais aconteciam até no Vaticano. Segundo Paul Johnson, os papas da Renascença eram vistos mais como príncipes pecadores do que como líderes espirituais. O papa Alexandre VI, por exemplo, teve uma vida tão devassa que promoveu o irmão de uma de suas amantes ao posto de cardeal. As conspirações articuladas por sua família, os Borgia, tornariam-se folclóricas. Alexandre VI casou e descasou sua filha Lucrécia Borgia para aumentar seu patrimônio e tramava envenenamentos em conluio com o filho, César Borgia. Os Medici também “elegeram” papas da família: em 1513, Giovano de Medici, filho de Lourenço de Medici, tornou-se Leão X, cujo pontificado seria marcado pela ascensão de familiares aos postos importantes do Vaticano. Apesar da bandalheira, a vaidade papal serviu de motor para a execução de alguns dos maiores monumentos artísticos da civilização ocidental, da Capela Sistina à Basílica de São Pedro. Se os próprios papas agiam como estadistas sem ética em busca do poder, como deveria agir um príncipe para manter-se soberano?

A política como ela é

Maquiavel é considerado o fundador da ciência política justamente por tentar responder a pergunta acima de maneira realista: em sua obra, ele trata o jogo do poder como ele é – e não como deveria ser. O florentino confrontou o idealismo de pensadores da Grécia antiga, como Aristóteles, e de filósofos medievais, como Santo Agostinho. Fez isso valendo-se de sua experiência na chancelaria da administração pública de Florença, onde o que viu era diferente do que lia. Concluiu que a política não era tarefa para idealistas. E, sim, para príncipes dotados de astúcia, sagacidade e violência. Segundo o ensaísta americano Isaiah Berlin, Maquiavel apenas escancarou o óbvio: a ética cristã da compaixão nem sempre era compatível com a ética do Estado. Ou seja: o soberano que quisesse manter a paz e proteger seu principado teria que agir como raposa. Tudo para enfrentar os caprichos da Fortuna, a deusa pagã representada por uma mulher girando uma enorme roda em que homens ora estavam em cima, ora em baixo: a roda da Fortuna.

No final de sua vida, ironicamente, a Fortuna quis que Nicolau Maquiavel não fosse reconhecido por seu trabalho. Por ter ocupado cargos na administração florentina no período em que os Medici haviam sido expulsos da cidade, ele perdera o seu posto na chancelaria assim que a poderosa família voltou ao poder, em 1512. A partir daí, viveu no campo. Pela manhã, jogava cartas com lenhadores e homens simples. À noite, trocava as roupas enlameadas pelos trajes oficiais e se dirigia ao gabinete de trabalho onde lia, escrevia e dizia encontrar-se “com os homens da Antigüidade”. Foi dessas “conversas” que nasceria o clássico O Príncipe. Dedicado a Lorenço de Medici, a obra nasceu de uma tentativa do pensador de voltar ao governo. Lourenço não entendeu o recado, e Maquiavel morreu, em 1527, longe do poder.

Livro

A Itália no Tempo de Maquiavel, Paul Larivaille, Companhia das Letras, 1991. R$ 44

Fonte: Historia.abril

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A invenção da guerra



por Celso Miranda

O que é mais difícil de entender, no mundo atual, que a disposição de governantes ou líderes de suas nações de enviar homens para a guerra? O que é mais difícil de entender que a disposição dos soldados de morrerem por seus países? E, no entanto, eles o fazem.

A leitura de A Arte da Guerra (Campus), de Nicolau Maquiavel, não deve convencer nenhum pacifista da utilidade da guerra. Tampouco vai demover seus promotores de continuar resolvendo suas diferenças no braço. O principal efeito do clássico volume, escrito por volta de 1520, é deixar entrever como a hierarquia, o patriotismo e a religião foram – e sempre serão – usados para manejar os humores de quem morre e de quem envia à morte seus homens. “Todas as artes apresentadas à sociedade para o benefício comum da humanidade e todas as leis que foram instituídas para obrigá-los a viver no temor a Deus e em obediência às leis humanas seriam inúteis e sem sentido se não fossem sustentadas e defendidas por uma força militar”, escreveu.

Para Maquiavel, deve-se ensinar ao bom soldado fidelidade, amor à paz e temor a Deus. “Quem deve ser mais fiel que o homem a quem se confia a segurança do país? Quem deve amar mais a paz que aqueles que sofrem na guerra? Quem tem mais obrigação de adorar a Deus que os soldados, diariamente expostos a inúmeros perigos, homens que mais precisam receber Sua proteção?”

A guerra torna-se um instrumento do Estado para garantir seu poder. Não mais vinganças ou duelos. Guerra é guerra e o que importa é vencer. A esse objetivo submetem-se todas as iniciativas e interesses.

Fonte: História.abril

terça-feira, 2 de junho de 2009

Amizade genial



Você sabia? O artista italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) e o pensador Nicolau Maquiavel (1469-1527) foram amigos. No livro Da Vinci e Maquiavel – Um Sonho Renascentista, o historiador americano Roger Masters relata como ambos idealizaram, juntos, o desvio do Rio Arno. Da Vinci fez o projeto para irrigar o vale e embelezar a cidade de Florença. Maquiavel, responsável pela política externa florentina, queria desviar o rio da cidade inimiga de Pisa e privá-la de água. Só que o dique iniciado desabou e o Arno retornou ao curso original. O livro mostra que gênios podem se dar bem na execução de uma tarefa comum. Sem crises de ego. Mesmo quando o projeto fracassa.

Fonte: História.abril