quarta-feira, 18 de agosto de 2010

FHC ensina Maquiavel: "Às vezes, o presidente deve mentir"

Cercado de intelectuais no Cultura Artística Itaim, em São Paulo, na noite desta segunda-feira, 9 de agosto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recolhe elogio temporão pela conferência de abertura da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), na homenagem ao sociólogo pernambucano Gilberto Freyre. "Só se fala no senhor. Todos gostaram!", afaga um conviva, durante o coquetel de lançamento da parceria Penguin-Companhia das Letras.

Com a presença de Lygia Fagundes Telles, João Moreira Salles, Lilia Moritz Schwarcz, Eduardo Gianetti da Fonseca e Matinas Suzuki Jr., as editoras lançaram "O príncipe", de Maquiavel, "Pelos olhos de Maisie", de Henry James, "Essencial Joaquim Nabuco" e "O Brasil Holandês" (organizado por Evaldo Cabral de Mello).

Autor do prefácio de Il principe, o "príncipe dos sociólogos" lustra a modéstia, segurando uma taça, perto de entrar no auditório para uma conferência sobre Nicolau Maquiavel (1469-1527): "Não sei o que vou falar. Já está tudo aqui". Rosto lavado, aprumado num terno cinza, FHC ouve o editor Luiz Schwarcz chamá-lo de "um clássico":

- ...O presidente que, em si, já é um clássico da sociologia brasileira...

Na hora do solilóquio, o líder do PSDB sobe as escadinhas do palco e comprime o ego:

- Não sou clássico coisa nenhuma!

Depois de Casa Grande & Senzala, ele marcha no agosto literário com a República de Florença & Machiavelli. Dispõe-se a não chatear a plateia.

- Outro dia, Gilberto Freyre deu mais trabalho que Maquiavel.

No início da aula sobre o clássico decifrador dos ardis da política, FHC se refugia na cautela dos sociólogos, mas faz sobrevoos sobre o Brasil num tom provocante, mesmo quando não deseja metaforizar uma república sul-americana bem distante - tempo e espaço - das tramas violentas de César Bórgia.

- É difícil dizer uma coisa que ninguém tenha dito sobre Maquiavel. Aliás, uma das características das obras clássicas é que todo mundo fala sobre elas, o que gera muito desacordo... Não é só com Maquiavel que acontece isso. Leio toda hora coisas a meu respeito que eu nunca pensei.

A princípio, recupera a história italiana, as circunstâncias da escrita de "O príncipe", que foi dedicado ao neto de Lourenço de Médici, o Magnífico.

- Ele (Anthony Grafton, autor da introdução) mostra que é uma obra que revela uma mudança de momento na história da Itália... A Itália levou o tempo inteiro se organizando e até hoje não conseguiu se organizar... - Pausa para os risos. - Não podemos falar, nós temos também nossos pecadilhos!

No prefácio do livro, FHC se aprofunda nas origens do maquiavelismo: "Como seus antecessores intelectuais, (Maquiavel) partiu do que é inerente ao ser humano. Não viu na natureza humana, entretanto, a vocação para o exercício do bem, senão que notou impulsos com motivações egoísticas. O interesse próprio, a ambição, a inveja, a vontade de domínio, motivam a ação dos homens...".

Dando apenas um gole d'água no parlatório, o conferencista complementa a originalidade do pensador italiano:

- Cada cidade da Itália tinha um sistema de governo diferente. Maquiavel viu tudo isso. O que ele talvez não tenha percebido é o fato de que as cidades italianas estavam desenvolvendo o capitalismo... Maquiavel não estava interessado em olhar a economia, mas estava interessado em como se exerce e mantém o poder. Aí ele inovou.

O ex-chanceler Machiavelli, acrescenta FHC, "rompe com os cânones de encarar a política". E prossegue: "Muita gente diz que ele entendeu o Estado, o que é um exagero. Mas a forma de governar, sim." Liberto dos fundamentos históricos, inicialmente jorrados nos alunos, o ex-presidente flutua em terreno mais amistoso: a inveja, a cobiça, o poder sem "maior transcendência do ponto de vista moral". Como esperado, ele salta alguns séculos e espelhos.

- Maquiavel mostra que quem exerce o poder quer mantê-lo - Leve interrupção. - Não é o caso meu, nem do Lula!

Por trás das palavras, inevitáveis paralelos entre Lula e FHC na exposição do ex-presidente sobre a virtù, o controle dos acontecimentos, e a fortuna.

- O homem de governo tem que se manter no poder. A sorte, a fortuna, que pode ser negativa, a má fortuna... Mas, se além da fortuna ele tem virtù, pode encarar a má fortuna... A pior situação na sociedade é a inexistência de poder.

A bondade.

- Ele não vai aconselhar o príncipe a ser mau, mas em circunstâncias excepcionais o dever do príncipe é não ser bom. O dever é manter-se no poder. Manda matar.

Os dois andares.

- Maquiavel sempre percebeu uma oposição entre quem manda e quem obedece, o príncipe e o povo... Mas esse povo não aparece com a virtù necessária para a mudança.

FHC cita Max Weber e Antonio Gramsci como pensadores que retomaram as ideias de Maquiavel, principalmente a respeito das diferenças entre a moral comum e a do príncipe. Tudo são memórias, e o ex-presidente se refere a "decisões agônicas":

- Às vezes, é necessário dissimular. Vou dar um exemplo pessoal. Um exemplo de todo presidente... O jornalista chega e pergunta: "Presidente, vai haver desvalorização do câmbio amanhã?". Você tem que dizer: "Não, o que é isso!". Aí, amanhã, você desvaloriza. Você tem que mentir, se não quebra o País.

A minutos do fim, sentencia:

- Maquiavel não foi maquiavélico. Não era de enganar, nem de se auto-enganar.

Na descida do palco, um sussurro para Luiz Schwarcz.

- Essa escadinha aqui é à prova de velhice.

Lygia Fagundes Telles o beija. A meio caminho, Eduardo Gianetti, coordenador do programa econômico de Marina Silva (PV) e autor de "Auto-engano", o cumprimenta:

- Parabéns pela palestra. Magnífica, como sempre!

FHC, o Magnífico, retribui:

- Generoso.

- Não, magnífica!

- Sempre que posso falo bem da Marina - avisa.

- Ah, presidente, ela é uma força oxigenadora da política, sem entrar em valorações morais... - ironiza Gianetti.

- Hoje não pode! Proibido por Maquiavel.

Dois engravatados reprovam a cena:

- Puxa-saquice...

"Ah, vocês!", diz FHC a três jornalistas. Agora é política, Serra e Lula sem a desculpa de Maquiavel. Ou nem tanto. Ataca o adversário petista:

- Maquiavel não justifica qualquer dissimulação.

Questionado sobre a ausência na campanha de José Serra (PSDB), FHC se desvia com elegância do que todos sabem se tratar de rejeição: "Não tenho energia". Terra Magazine pergunta como Lula está conduzindo as eleições em 2010.

- Não vou dizer como ele tem conduzido. Mas não fiz como ele faz. Ao se transformar em militante, está abusando, passa dos limites - critica. - O limite é a lei. A toda hora o presidente está sendo multado.

E o desafio de Lula, de que vai ensiná-lo a ser ex-presidente?

- Tô louco pra aprender. Ele disse que o ex-presidente não deve falar nada, só elogiar. Os ex-presidentes, a não ser o Itamar, só falam bem dele.

A jornalista Mona Dorf se aproxima com a filmadora.

- O senhor disse que a maior virtude do político é manter-se no poder...

FHC abre os caninos, num sorriso reprobatório de professor:

- Eu, não. Maquiavel! Não sou maquiavélico!

Outra vez sério, deixa o teatro com anotações sobre "O príncipe".

Fonte:Terra

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