quarta-feira, 18 de novembro de 2009

De Sócrates a Maquiavel

Não; o primeiro-ministro de Portugal não é um cidadão comum. Faz todo o sentido que tenha - no exercício do seu cargo - certos privilégios que os cidadãos comuns não têm. Por isso, ele deve também obrigar-se a certas reservas que os cidadãos comuns não precisam de respeitar. E apenas parte disto está escrito na lei.

José Sócrates foi avisado. Por exemplo, quando processou jornalistas por textos que ele considerava caluniosos. Na altura, a reacção de José Sócrates (persuasiva para alguns dos seus apoiantes) foi: terei eu menos direitos do que o cidadão comum? Não poderei eu processar um cronista que me insulta? Onde está a lei que me veda esse direito?

Em lado nenhum, escrevi eu na altura. É o primeiro-ministro que deve vedar-se a si mesmo esse direito. Desde logo, porque o cronista não o pode processar a ele e porque, mesmo se o pudesse fazer, a assimetria de poder seria sempre gritante. O primeiro-ministro deve ser parcimonioso no uso do seu poder retaliatório contra um cidadão qualquer.

José Sócrates pergunta agora: como é possível que eu tenha sido escutado? Não devem os titulares dos órgãos de soberania estar protegidos por disposições especiais? Não estará isto a ir longe de mais?

A primeira resposta é: aha! O primeiro-ministro não pode querer ser uma pessoa normal (para processar jornalistas) e uma pessoa especial (para ter regras privilegiadas em escutas) ao mesmo tempo. Isso não está na lei, mas está na moral da República; ao contrário das antigas monarquias, a República não dá privilégios gratuitos; com esses privilégios tem de vir uma reserva especial de comportamento, quer ela esteja descrita na lei ou não.

Mas a segunda resposta é: as escutas ao primeiro-ministro devem, sim, ter regras especiais. Ele, enquanto decisor, tem informação privilegiada que deve ser protegida.

As escutas que têm inquietado o país, porém, não são escutas a José Sócrates; são escutas com José Sócrates - escutas nas quais ele aparece. E é fútil argumentar que se as escutas forem inválidas nós devemos fingir que elas não existem. A mente pública não funciona com essa rigidez processualista. Ao não ter tido a reserva que deveria no momento próprio, José Sócrates passou a imagem de alguém obcecado com a imprensa. E agora estas notícias parecem fazer sentido, muito azar para ele e para todos nós. É grave imaginar que Sócrates tenha conversado sobre um grupo de imprensa com um amigo banqueiro, que tinha nas mãos a torneira do dinheiro que poderia salvar ou não salvar esse grupo de imprensa. É inquietante imaginar que ele soubesse da tentativa de compra de outro grupo de imprensa em Março, quando muitos de nós (eu incluído) o tomámos ao pé da letra quando ele em Junho nos disse que não sabia. E é mais grave e inquietante ainda que sejam notícias baseadas em escutas que não conhecemos, e cuja credibilidade não podemos aferir.

Maquiavel, na Florença do Renascimento, explicou-nos como um governante pode mentir em caso de necessidade. Esqueceu-se de dizer que o povo também está preparado para, em caso de necessidade, fingir que não vê. E talvez seja isso que vai acontecer agora: o Governo acabou de tomar o posse, o país não quer lançar-se no caos. Mas Sócrates deve saber isto: ou ele desata este nó agora, prestando um esclarecimento formal ou, depois de passar o estado de necessidade, ninguém vai voltar a fingir mais nada por ele.

Fonte:Jornalpúblico

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