quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Resenha - Maquiavel de Quentin Skinner

A publicação do estudo de Quentin Skinner, Maquiavel, vem enriquecer o acervo de obras em português sobre o pensamento político clássico. Trata-sede livro admirável e original, valorizado sobremaneira com o cuidadoso trabalho de tradução elaborado pela Prof â M. Lucia Montes. Após quase 500 anos da primeira edição de O Príncipe ─ obra magistral do mestre florentino ─ permanece viva a idéia de ser infindável a possibilidade de desvendar os meandros de sua construção analítica. Muitos arriscaram apreender o recado do escritor renascentista. Nesta instigante empreitada, que se inicia no próprio século XVI, Maquiavel foi alvo das mais diferentes e díspares interpretações. Sofreu ataques, sua obra foi acusada de inspirar atos ignominiosos, e do índex papal passou à história travestido com um dos mais temíveis adjetivos ─ maquiavélico. Tal reputação atravessou as fronteiras da Itália, ocupou o continente europeu e daí expandiu-se, desconhecendo limites geográficos e lingüísticos. A pecha do maquiavelismo sobreviveu às disputas entre jesuítas e protestantes e alojou-se no embate político, sempre como uma forma torpe e eficaz de caracterizar moralmente o adversário. E mais ainda: os termos maquiavélico e maquiavelismo não se restringiram sequer ao universo da política ─ habitaram, sem cerimônia, o mundo das relações privadas.

Não se pense, contudo, que Maquiavel com seus escritos esteve somente sujeito às interpretações que justificam a malignidade. Nem mesmo que a secularização dos últimos tempos libertaram-no do opróbrio moralista. Ao lado das mais ferozes condenações, muitos procuraram com igual paixão regenerar sua imagem, apontando os objetivos democráticos do primeiro grande analista político da modernidade. Rousseau encabeça uma longa lista, cerrando fileiras contra aqueles que vêem em Maquiavel o inspirador da tirania, o mestre do mal.

Face a tantas e tão contraditórias interpretações que se desdobram sem cessar nestes quatro séculos, um fato se impõe: há algo muito forte em Maquiavel, capaz de gerar amor e ódio, e de provocar nos estudiosos das idéias a necessidade de decifrar o enigma proposto. Quentin Skinner se lança nesta aventura e para isso coloca-se no efício de historiador, cujo trabalho, afirma, "consiste seguramente em servir como um anjo que registra, não como um juiz que condena" (p. 134). Seu registro baseia-se num contraponto entre a vida e a obra de Maquiavel. Assim, busca demonstrar a influência da carreira diplomática e do posterior exílio forçado nos escritos do autor renascentista.

A experiência na chancelaria propiciaria a Maquiavel observar ativamente a arte de conduzir os negócios do Estado. Skinner sustenta que de sua prática como funcionário público, Maquiavel intuiu os princípios da arte de governar que exporia mais tarde nas suas obras históricas e políticas. Desta forma, suas missões junto ao rei Luís XII da França, a César Bórgia, ao papa Júlio II, ao imperador Maximiliano, indicaram-lhe os motivos da instabilidade dos governos. Em poucas palavras, a "debilidade básica que todos compartilhavam consistia em uma fatídica inflexibilidade diante da mudança das circunstâncias" (p. 31).

O confronto entre as circunstâncias e o modo de agir dos governantes ─ ou entre a Fortuna e a Virtu ─ compõe o cerne da análise maquiaveliana. Nesta análise, há uma clara rejeição da moralidade humanista convencional, quer a partir de uma crítica impenitente aos princípios consagrados pela tradição, quer a partir de um silêncio eloqüente. De uma forma ou de outra, Maquiavel provoca um verdadeiro cataclisma. O homem é visto como um sujeito da história, capaz, se virtuoso, de resistir aos golpes da Fortuna

A Virtu é a disposição de fazer tudo aquilo que for ditado pela necessidade ─ independente do fato de ser a ação eventualmente iníqua ou virtuosa ─ para alcançar os mais altos objetivos. Ora, denotando a Virtu a qualidade de flexibilidade moral, cai por terra a rígida oposição cristã entre os vícios e a virtude. Há vícios virtuosos, e há virtudes que trazem a ruína.

Skinner demonstra ainda uma profunda ligação entre as teses desenvolvidas por Maquiavel no Príncipe e nos Discursos, divergindo, sem contudo atacar explicitamente, dos intérpretes que julgam existir, se não duas formulações muito distintas ou mesmo contraditórias, pelo menos dois textos independentes. Skinner, ao contrário, julga que nos Discursos o mestre florentino retoma o Príncipe, aprofundando suas proposições. Trata-se, uma vez mais, do desenvolvimento dos argumentos que sustentarei a indispensabilidade da Virtu para resistir aos infortúnios da sorte.

Aqui, torna-se clara a defesa da liberdade e sua identificação com a grandeza de uma cidade. Roma antiga atingiu a glória porque a Virtu esteve disseminada entre governantes e governados, e porque suas leis garantiram que a corrupção não tivesse efeitos devastadores.

O estudo de Roma ─ tema central dos Discursos ─ onde a liberdade foi preservada por mais de 400 anos, não se esgota em si mesmo. Skinner sustenta que "existe uma contínua preocupação com o destino de Florença por trás da argumentação geral" (p. 110). Maquiavel compara com angústia a total corrupção de sua cidade natal e a Virtu exemplar do mundo antigo. Sua Itália entregara-se à escravidão, a corrupção com sua influência maligna sufocou as liberdades, levando à tirania e à desgraça. Maquiavel, o amante da liberdade, o analista de situações, acreditava firmemente que este quadro poderia ser alterado. Afinal, a fortuna só manifesta sua força quando não encontra homens de coragem, cidadãos de Virtu.

Maquiavel, de Skinner, é uma importante contribuição para a leitura, dos escritos do autor renascentista. Mas, talvez, sua mais irresistível qualidade esteja no, fato de sugerir que Maquiavel continua aí para ser decifrado. Trata-se de um desafio que se renova a cada leitura.



Fonte
:Maquiavel de Quentin Skinner São Paulo: Editora Brasiliense, 1988 por Maria Tereza Sadek

2 comentários:

Ricardo disse...

Roberson:
Realmente, parece-me que tanto o "pecado" - como tu colocaste no post anterior - quanto a "eternidade" de Maquiavel se referem ao mesmo aspecto de sua filosofia, qual seja, expor realisticamente a natureza humana, pelo menos quanto às suas relações com o poder.
Pior, entretanto, seria se ele fosse contemporâneo de Nietzsche e concordasse com esta último de que, na realidade, todas as nossas relações são de poder. Se assim fosse, muito mais do que demarcar o terreno político como aquele em que as "orientações" ao governante seriam, ficaria claro que todas as nossas relações sociais são pautadas por aquele mesmo tipo de comportamentos.
Infelizmente, isso dói! Ainda mais comparando essa ideia àquela de uma essência naturalmente boa, concebida, e mantida na História Ocidental, segundo o modelo dogmático cristão, do qual o próprio Renascimento procurava se libertar.
Quero registrar, acima de tudo, que o blog é muito bom.
Abraço.

Roberson Marcomini disse...

Olá Ricardo, fiquei impressionado com o teu comentário, não tinha relacionado Nietzsche ainda, se eles fossem contemporâneos iriam dar uma dor de cabeça enorme na Igreja. A relação de poder em Maquiavel ajuda-nos a compreendermos que em nossa vida tudo aparenta ser um jogo de xadrez. Não queria que Maquiavel tivesse razão, mas sempre aparece um fato em minha vida onde tenho que mexe a peça do tabuleiro.

Abraço e muito obrigado pelo comentário!