quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Papa e Maquiavel

Em 1981, Joseph Ratzinger era arcebispo de Munique quando foi designado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o nome atual da antiga Inquisição). Ratzinger se tornou o principal teólogo de João Paulo II. O polonês Karol Wojtyła (1920-2005) foi o primeiro Papa não-italiano em cinco séculos. Wojtyła era conservador, lutou contra o comunismo na Polônia, e possuía um carisma excepcional. Foi o mais popular dos papas. Quando morreu, o desafio para substituí-lo mostrou-se imenso. Em 19 de abril de 2005, o conclave dos cardeais elegeu como o novo bispo de Roma a antítese de Wojtyła. Ratzinger, ou Bento XVI, é um intelectual recluso e desprovido de qualquer carisma. O único ponto em comum com Wojtyła é seu conservadorismo.

Na semana passada, Ratzinger completou cinco anos de papado. Muitos o consideram um péssimo papa. E a Igreja Católica Apostólica Romana está mergulhada na sua pior crise em 400 anos, desde a Reforma Protestante. Em boa parte, o responsável por esta situação é o próprio Ratzinger. Vamos enumerar os piores momentos do seu papado:

Em 2006, Ratzinger insultou os muçulmanos ao citar uma frase do imperador bizantino Manuel II (1391-1425): “Mostre-me então, o que Maomé trouxe de novo, e ali só encontrará coisas más e desumanas, como esta, de que ele determinou que se propagasse através da espada a fé que ele prega”.

Em fevereiro de 2009, Ratzinger suspendeu a excomunhão do bispo ultra-conservador inglês Richard Williamson (ele foi excomungado em 1988 por João Paulo II), apenas repreendê-lo um mês depois, quando Williamson negou a existência do Holocausto na II Guerra. Williamson disse que as câmaras de gás nunca existiram e que menos de 300 mil judeus morreram nos campos de concentração nazistas – foram 6 milhões.

Ainda em 2009, ao visitar a África, um continente devastado pela Aids, Ratzinger disse: “Não se pode superar (o problema da Aids) com a distribuição de preservativos: ao contrário, eles aumentam o problema”. Prefiro me abster de comentar tal frase.

Fervura máxima
O desconforto de milhões de fiéis atingiu o ponto de fervura com a sucessão de escândalos que vieram a público nos últimos meses, envolvendo o abuso sexual de menores por padres nos Estados Unidos e na Europa. A gota d’água veio em março. A arquidiocese de Munique revelou que, em 1980, quando era presidida por Ratzinger, o padre Peter Hullermann chegou à cidade para trabalhar com crianças. Mas pesavam sobre ele suspeitas de ter molestado meninos em Essen. A arquidiocese não denunciou Hullermann à polícia. Ele foi submetido a sessões de terapia e reassumiu suas funções quase imediatamente.

Em 1986, Hullermann foi condenado por pedofilia pela justiça alemã. Mas não foi preso. Continuou trabalhando com crianças por 24 anos – até o mês passado. Hullermann foi suspenso três dias depois de a Igreja reconhecer que, em 1980, a decisão de Hullermann reassumir suas funções teria sido dada pelo auxiliar direto de Ratzinger à época – e que o futuro papa teria recebido um memorando informando sobre o caso. O Vaticano afirmou que Ratzinger nunca chegou a ver tal documento, mas o estrago estava feito. Na sua Alemanha natal, uma pesquisa feita em março apontou que 40% da população considerava Ratzinger um péssimo papa.

O pior estava por vir. Em 9 de abril, portanto há duas semanas, a agência de notícias Associated Press (AP) deu um tremendo furo - que parece estar passando totalmente despercebido da imprensa brasileira. A AP revelou uma carta de 1985, escrita em latim e assinada por Ratzinger. Nela, o então cardeal resiste a um pedido de afastamento do padre americano Stephen Kiesle. A carta faz parte de uma série de correspondências trocadas entre a diocese de Oakland, na Califórnia, e o Vaticano (leia a correspondência aqui), entre 1981 e 1986. Na primeira carta, o bispo de Oakland, John Cummins, diz que “o padre Kiesle talvez nunca devesse ter sido ordenado. Ele experimentou uma série de dificuldades psicológicas, emocionais e sexuais durante seu sacerdócio. Em agosto de 1978, foi preso pela polícia e acusado de ter mantido liberdades sexuais com pelo menos seis meninos de 11 a 13 anos.” Kiesle foi condenado a três anos de liberdade vigiada. Neste período, prossegue Cummins, Kiesle se submeteu a terapia e decidiu abandonar a batina. A carta termina pedindo a autorização do Vaticano para destituir Kiesle das obrigações do sacerdócio, incluindo o celibato.

A Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, pediu mais informações do caso para tomar uma decisão. Em fevereiro de 1982, Cummins endereçou uma carta ao cardeal Ratzinger, incluindo as informações exigidas e pedindo uma solução. Não houve resposta. Em 1984, uma segunda carta ficou sem resposta. Em 1985, Cummins cobrou de Ratzinger uma posição. Em 6 de novembro de 1985, Ratzinger respondeu:

“Este tribunal, embora considere os argumentos apresentados em favor do afastamento, neste caso, serem da maior importância, não obstante julga necessário considerar o bem da Igreja Universal, juntamente com o do requerente, e também é incapaz esclarecer o dano que a concessão da dispensa possa provocar à comunidade dos fiéis. (...) É necessário que esta Congregação submeta incidentes deste tipo à mais cuidadosa consideração, o que exige um longo período de tempo. Neste meio tempo, Vossa Excelência não pode deixar de fornecer ao requerente tanto cuidado paterno quanto possível, além de explicar ao mesmo as razões deste tribunal, que está acostumado a seguir mantendo o bem comum. (...) Joseph Cardeal Ratzinger” (vide, na página 17 deste documento, a carta original em latim, e aqui a sua tradução para o inglês)

A descoberta da carta desafia o Vaticano, que insiste afirmar que Bento XVI jamais exerceu papel algum no bloqueio da remoção de padres pedófilos quando chefiava a Congregação para a Doutrina da Fé.

Em 10 de abril, o dia seguinte à divulgação da carta de Ratzinger, o biólogo inglês Richard Dawkins, um ateu militante, e o jornalista Christopher Hitchens (colunista de ÉPOCA), anunciaram a contratação de advogados para processar o Papa por “crimes contra a humanidade”. Dawkins e Hitchens acreditam que podem explorar o mesmo princípio legal usado para prender o ex-ditador chileno Augusto Pinochet. Quando visitou a Inglaterra, em 1998, Pinochet foi impedido de deixar o país enquanto respondia a um processo por crimes cometidos na ditadura militar chilena, entre 1973 e 1990. Dawkins e Hitchens querem tentar prender Ratzinger em setembro, quando visitará a Inglaterra. Acreditam que o Papa não poderá alegar imunidade diplomática para escapar à prisão, pois não é o chefe de um Estado reconhecido pelas Nações Unidas.

O processo movido pelos dois ingleses é o menor dos desafios que Ratzinger enfrenta. Neste momento, na Europa e nos Estados Unidos, várias vozes começam a pedir sua renúncia, algo que não ocorre desde 1415, quando Gregório XII abriu mão do bispado romano.

O Príncipe da Igreja
O Papa é o líder espiritual da Igreja Católica, mas também é um líder político. É o chefe de Estado do Vaticano, uma Cidade-estado encravada no centro de Roma. Por isso, suas ações podem ser discutidas sob a ótica da política. É aí que entra Nicolau Maquiavel (1469-1527), o historiador, diplomata e filósofo florentino. O Príncipe é sua obra-prima. É um manual para governantes que reúne ensinamentos sobre como conquistar Estados, e conservá-los. Na Itália do século XVI, diz Maquiavel, todo o poder emanava do Príncipe e em seu nome era exercido (o substantivo “povo” só viria substituir o príncipe no fim do século XVIII). Para Maquiavel, aos olhos do povo o Príncipe deve sempre ser bom. Para todos os efeitos, ele só faz o bem. Todas as decisões impopulares tomadas pelo príncipe são executadas por seus capitães – e a eles são creditadas. Assim, se e quando algo dá errado, quem perde a cabeça são os capitães. O príncipe sempre sai ileso.

Após o vazamento da carta pela AP, Ratzinger parece ter começado a flexionar sua musculatura política. Num sermão na semana passada, conclamou os cristãos a se penitenciar pelos ataques feitos à Igreja. Sem se referir aos casos de abusos sexuais, Ratzinger disse: “Nós cristãos muitas vezes evitamos a palavra penitência, que nos parece muito dura. Agora sob os ataques do mundo que nos falam dos nossos pecados, vemos como é necessário fazer penitência, reconhecer aquilo que está errado em nossa vida.” Dias depois, já na ilha de Malta, Ratzinger se encontrou com jovens que foram vítima de abusos por padres. Prometeu-lhes que a Igreja faria tudo ao seu alcance para fazer justiça às vítimas e proteger os jovens no futuro.

E a justiça começou a ser feita. Em menos de 48 horas, Ratzinger aceitou a renúncia de três bispos, um irlandês que acobertou padres pedófilos, um alemão acusado de bater em crianças por décadas, e um belga que admitiu ter abusado de um menino por anos. Ao mesmo tempo, no Vaticano, cardeais saíram em defesa de Ratzinger, citando o seu papel decisivo no afastamento, em 1995, de Hans Groër, o cardeal de Viena, acusado de molestar meninos.

Seria Bento XVI um político maquiavélico? Esta pergunta só Ratzinger pode responder. Eu, pessoalmente, acho que não. Maquiavel é um homem do Renascimento, uma época marcada pelo início da separação entre a Igreja e o Estado. Já para Ratzinger, foi no Renascimento que o homem começou a se afastar de Deus. Não, Ratzinger não é maquiavélico. Maquiavel é moderno demais. O Papa alemão é um homem medieval. Apesar de liderar a Igreja no século XXI, sua visão de mundo é aquela da Idade Média, quando a Igreja e a fé ocupavam o lugar central da vida européia. A missão de Ratzinger é manter a coesão da Igreja, enquanto busca retornar àquele padrão perdido de pureza da fé. “Nos tempos modernos se teorizou a liberação do homem, também da obediência a Deus: o homem seria livre e autônomo e nada mais. Mas esta autonomia é uma mentira”.

Será interessante ver como este Papa intelectual, político hábil e nada carismático se sairá nas próximas semanas e meses. Três bispos já renunciaram. Terá sido o suficiente? Ou será que a solução da crise na Igreja passa pela renúncia de alguns cardeais?

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