Ao contrário do que ocorre no principado, a educação para a cidadania no interior do regime republicano implica em levar o indivíduo a afeiçoar-se mais às leis e instituições do que à pessoa dos governantes e autoridades.
O povo julga pelas aparências, deixando-se enganar por elas. Enquanto no principado esse fato não produz perturbação, visto que a tomada de decisões permanece monopólio do príncipe, na república, ao contrário, representa problema político da maior gravidade. Na perspectiva maquiaveliana, a república caracteriza-se por ser um regime político em que a guarda da liberdade deve ser confiada à maioria, isto é, ao povo, a quem compete inclusive a distribuição de cargos e dignidades. Na república o povo escolhe, tem poder de decisão, mas ele pode ser facilmente enganado e provocar a ruína do Estado: "muitas vezes o povo, enganado por uma falsa imagem do bem, deseja sua ruína" (Machiavelli, 1992 - Discorsi, I, 53: 134).
... (A) manutenção da liberdade através das instituições republicanas deve ser confiada à coletividade dos cidadãos e, de modo muito especial, aos excelentes, aqueles que possuem qualidades e virtù para agir visando o bem comum. O cidadão que assim se comporta fatalmente torna-se alvo do reconhecimento popular, conquistando fama, reputação e glória. A reputação oriunda do "favor popular", por sua vez, redunda em autoridade e pode conduzir à ambição política, uma vez que o desejo de poder, natural em todos os homens, faz-se particularmente presente nos indivíduos de mérito que, além de ambicioná-lo, têm condições e oportunidade para alcançá-lo.
Portanto, é justamente pelas mãos daqueles com quem a república mais precisa contar na salvaguarda da liberdade - os cidadãos virtuosos que a tirania pode instalar-se. Maquiavel explícita com todas as letras esse dilema: "sem cidadãos reputados uma república não pode existir, nem governar-se bem de algum modo. Por outro lado, a reputação dos cidadãos é causa da tirania nas repúblicas" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). A boa reputação contém um potencial tirânico, contra o qual é necessário precaver-se.
A ambição pessoal por glórias e riquezas pode entrar em rota de colisão com o bem comum, mesmo num regime politicamente sadio. Das duas finalidades que a ambição humana persegue com maior afinco - riquezas e honrarias - Maquiavel reputa a primeira incompatível com o governo republicano, uma vez que ela contém a semente da corrupção. Para que a riqueza sem virtudes não possa corromper (cf. 1992 - Discorsi, III, 16: 222), a pobreza se vê elevada à dignidade de princípio político: "a república bem organizada deve manter o Estado (i] publico) rico e os cidadãos pobres" (ibidem, I, 37: 119).
Existe, entretanto, flagrante contradição entre o preceito republicano de manter os cidadãos na pobreza e a natureza ambiciosa dos homens em geral. Maquiavel sabe que não pode contar com uma atitude altruísta por parte dos cidadãos, ou supor que abririam mão de interesses particulares em nome do bem coletivo, o que seria, inclusive, contraditório com sua concepção da natureza humana. Resta uma alternativa: que a ambição por riquezas seja substituída por outro tipo de satisfação ou recompensa pessoal - honra e glória - que também fazem parte dos apetites humanos. No plano individual, a glória representava uma das mais altas aspirações do homem renascentista. Todavia, enquanto os escritores humanistas concebiam a glória e a fama sob um prisma eminentemente individual, ligado à preocupação do indivíduo em perpetuar seu nome no mundo, Maquiavel apropria-se desses valores humanistas para instrumentalizá-los em vista de um projeto político coletivo.
Além de corresponder à realização de uma aspiração individual, a glória pode, simultaneamente, harmonizar-se com o bem comum, ao contrário da riqueza.
Maquiavel reconhece como legítima a aspiração à reputação pessoal: o perigo está em sobrepô-la ao bem coletivo. Promove-se, por assim dizer, um redirecionamento da ambição humana, canalizada para uma forma de satisfação compatível com o vivere civile. Além dos meios coercivos destinados a controlar a natureza maligna do homem - basicamente as armas e a lei -nas repúblicas a glória representa uma alternativa positiva à sua insatisfação inata. Ainda assim, permanece a necessidade de encontrar formas de harmonizar a aspiração pessoal à glória, enquanto exaltação de si mesmo, com a realização do bem comum.
Para satisfazer a legítima aspiração do cidadão à reputação pessoal sem danos ao bem comum, torna-se necessário considerar os meios empregados para conquistá-la, que, segundo o autor, são fundamentalmente dois: um público, outro privado. "O modo público é quando alguém adquire reputação aconselhando bem e, melhor ainda, agindo em benefício comum" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). Por esta via, o indivíduo procura ganhar destaque através de ações extraordinárias, gestos e atos inusitados e espetaculares que, simultaneamente, visem o bem comum, a exemplo dos romanos nos tempos áureos da república: "Assim agiram muitos romanos, ainda jovens, propondo que se promulgasse uma lei benéfica a todos, acusando algum cidadão poderoso como transgressor das leis ou fazendo outras coisas semelhantes, novas e notáveis, que dessem o que falar." (1bidem, III, 34: 242).
Este caminho para a fama deve estar aberto a todos os cidadãos, que através dele podem satisfazer sua ambição pessoal e, simultaneamente, beneficiar sua pátria; embora a honra e glória que disso resulta selam apropriadas individualmente, quando obtidas por essa via não trazem nenhuma ameaça.
A via privada, ao contrário, consiste na aquisição da boa reputação através de ações individuais, cujos beneficiários são também cidadãos particulares, visando, em última instância, com base no poder de influência acumulado, alcançar fins privados.
A via privada consiste em fazer benefícios a outros cidadãos privados, emprestando-lhes dinheiro, apadrinhando-lhes o matrimônio dos filhos, defendendo-os dos magistrados e fazendo-lhes favores particulares semelhantes, os quais transformam os homens em partidários (partigiani) e dão ânimo - a quem é tão estimado - para corromper as instituições públicas e violar a lei" (1992 - Discorsi, 111, 28: 235).
Sobre a reputação obtida por via privada o julgamento de Maquiavel é radical e categórico: ela é perigosa e nociva, Um só ato dessa natureza que se deixe impune pode arruinar a república; por isso aprova o procedimento que os romanos adotaram com relação a Spúrio Mélio, um rico cidadão.
Numa ocasião em que houve fome em Roma e as provisões públicas eram insuficientes para sanar o problema, Spúrio Mélio resolveu distribuir ao povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo o favor popular que o Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Spúrio um ditador, que o fez executar (cf. Machiavelli, 1992 - Discorsi, III, 28: 234).
A respeito desse episódio Maquiavel comenta: "deve-se notar como muitas vezes as obras que parecem boas (pie) e que não se podem sensata mente (ragionevolmente) condenar, tornam-se cruéis e perigosíssimas para uma república quando não são corrigidas a tempo" (Ibidem). A distinção maquiaveliana entre virtude moral e virtù republicana fica evidente nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode não ser compatível com o bem comum.
O perigo da via privada para a obtenção da boa reputação reside no fato de que ela pode arruinar a liberdade republicana pela instituição de um poder tirânico. Nos Discorsi manifesta-se, ao longo de toda a obra, a preocupação de exorcizar o fantasma da tirania, estabelecendo salvaguardas para a liberdade, fundamento do Estado voltado para o bem comum. Mesmo no melhor regime político - a república - a malignidade humana jamais é erradicada e a ambição privada sempre pode sobrepor-se ao bem público. O preço da liberdade é a constante vigilância, particularmente sobre os indivíduos que adquirem fama e reputação e por isso podem galgar cargos e magistraturas, para que "não possam fazer o mal à sombra do bem, de modo que só tenham a reputação que beneficia a liberdade, não aquela que a prejudica" (1992 - Discorsi, I, 46: 129).
Uma das formas de vigiar a liberdade, para que esta não sucumba à tirania, consiste em adotar uma conduta política baseada na severidade e no rigor. O dilema crueldade/piedade, já abordado em O Príncipe, reaparece formulado em termos republicanos: "Se a clemência (l'ossequio) é mais necessária do que o rigor (la pena) para governar a multidão" (1992 - Discorsi, III, 19: 225).
Depois de tecer longas considerações baseadas nos exemplos dos capitães romanos, Maquiavel conclui que, numa república, é mais louvável e menos perigoso adotar uma conduta mais rígida e severa, pois nesse procedimento tudo se dá em favor do público, em nada favorecendo à ambição privada; porque desse modo não se pode conquistar partidários (partigiani), isto é, mostrando-se sempre áspero com cada um, e amando só o bem comum; quem assim age não conquista amigos particulares (particolari amici), aos quais, mais acima, chamamos de partidários (partigiani) (Ibidem, III, 29: 229).
Nos regimes republicanos, o vínculo do cidadão com o Estado deve estabelecer-se fundamentalmente pelas vias institucionais; a criação de laços pessoais cria partidários, ou seja, promove a particularização do que é publico, principio elementar de toda tirania, e, portanto, ameaça à liberdade; o cidadão ambicioso pode aproveitar-se da reputação adquirida para usurpar o poder e instituir uma tirania.
Como a bondade, humanidade, piedade, clemência e outras qualidades análogas se prestam ao estabelecimento de vínculos de afeição pessoal, os comportamentos que se pautam por elas devem ser vigiados e postos sob suspeita, a exemplo do caso de Spúrio Mélio. Ao contrário do que ocorre no principado, a educação para a cidadania no interior do regime republicano implica em levar o indivíduo a afeiçoar-se mais às leis e instituições do que à pessoa dos governantes e autoridades.
Fonte: Lídia Maria Rodrigo (Maquiavel: Educação e Cidadania, Ed. Vozes, 2002, 83-89)