Falar sobre Maquiavel exige certa dose de precaução. Afinal, poucos nomes na tradição filosófica concederam adjetivos imediatamente reconhecíveis nos mais variados contextos. Das conferências na ONU às preleções em jogos de várzea, quando se atribui a fulano um caráter maquiavélico, presume-se daí um sujeito mau-caráter, ruim, cafajeste, maldito imoral que, para conquistar aquilo que deseja, põe freira no espeto. Corroborando este névoa pejorativa, mesmo os dicionários, quem diria, trataram de associar ao verbete “maquiavelismo” a “falta de escrúpulos”, a “política desprovida de boa-fé” e a “perfídia, traição”. Maquiavel pertenceria então ao mesmo campo ético de Hitler, Stálin ou Duque de Caxias (se quisermos um brasílico representante na corja dos facínoras). Numa palavra, embaixador do capeta. Mas chega um momento em que se deve encarar Maquiavel de frente, despojar toda a crendice que o envolve, e imergir ? com muita precaução - no texto.
Dificilmente a leitura fugaz de O Príncipe resistirá ao peso do preconceito tão bem alicerçado pelos costumes. Tomadas ao pé da letra, fora do conjunto da obra, suas indicações ao príncipe projetam-se certamente como escabrosas à consciência. A transcrição literal do segundo parágrafo do capitulo XV, por exemplo, - “Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade” - seria suficiente, aos olhos dos antimaquiavélicos, para fundamentar sua imoralidade, sua falta de princípios. Mas poderiam ir além, citando passagens em que o filósofo florentino defende que é mais seguro o príncipe ser temido que amado, que este deve abandonar a palavra dada quando lhe convém e “fomentar com astúcia certas inimizades”, que a aparência deve prevalecer à realidade, etc. Ali estaria, segundo eles, com dedo em riste, o autor responsável pela máxima “os fins justificam os meios”.
A desconstrução do mito, no entanto, começa precisamente neste ponto. Maquiavel nunca disse o tal provérbio (na realidade, a sentença surgiu no interior da moral jesuíta com o padre Busenbaum). Durante todo o texto, Maquiavel coloca o povo em primeiro lugar, demonstrando forte vocação democrática ao enxergar uma política injusta exatamente naquela que promove o descontentamento popular . A perfídia e a falta de escrúpulos, embora as apresente como vícios humanos, não foi sistematizada por ele. De longe se constata, aliás, sua crença na honestidade e na lealdade da vida civil . O que Maquiavel realiza, assustando a moral desprevenida, é apenas (como se fosse pouco) uma arqueologia das ações políticas na História, longa análise na qual se verificam as razões de sucesso ou infortúnio no decorrer histórico das civilizações. Para cada “maquiavelismo” acima, há uma justificativa comprometida com a história e a base empírica-comparativa pôde lhe fornecer uma conclusão amarga: “vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar”. Não se pode culpar Maquiavel por ter elucidado a realidade, por ter exposto cruamente as armadilhas da nossa constituição social. O erro persiste em não observar que a maldade dos homens precede a época de Maquiavel.
A obra não se limita, contudo, à mera exposição dos fatos históricos. A partir deles, o filósofo define o modo de agir e proceder do governante, as regras de eficácia na arte de governar. Na teoria maquiavélica (adjetivo que dá calafrios!), o homem de virtù, homem prudente e consciente de suas forças, deve estar preparado aos ímpetos desconhecidos da fortuna, do destino imprevisível, do acaso. A fortuna é como um rio caudaloso, que eventualmente pode causar enchentes, alagar planícies, destruir cidades. A virtù representa o engenho humano que constrói barragens e diques, para que na próxima cheia a impetuosidade do rio da fortuna seja controlada. A recorrência dos acontecimentos permite a análise do presente. Aí reside toda atitude política defendida por Maquiavel. A virtù deve pautar nosso livre-arbítrio, única parte em que cabe a ação sobre o destino. A sorte, fortuna, representa o outro componente inevitável e “quando um príncipe se apóia totalmente na fortuna, arruína-se segundo as variações dela”. Como se sabe em bom português, é sempre bom não dar sopa pro azar.
O mundo contemporâneo, que nos traz maior liberdade de ação e ao mesmo tempo um feixe maior de instabilidades e incertezas (sejam de ordem profissional, emotiva, espiritual), acaba de certa maneira nos aproximando da figura do príncipe. Daí decorre a importância da obra maquiavélica (arrepios!), desde que consigamos incorporar ao âmbito das relações privadas esta ética da virtù, sim, ética. O passo é longo, pois com dificuldade a aceitamos como tal. No brilhante artigo de 1949, Merleau-Ponty afirmava: “O que faz com que não se compreenda Maquiavel é que ele une o mais agudo sentimento de contingência ou do irracional do mundo com o gosto da consciência ou da liberdade do homem”. Parece que ainda não temos base empírica para poder tomar as rédeas do nosso destino. Permanecemos circunspectos e apreensivos diante dos vaticínios da fortuna, que atravessa intempestiva o dia-a-dia. Algumas vezes, ela ajuda, em outras, destrói. Mas pelo que se vê, adotar uma efetiva postura política para nossas vidas continua produzindo, como o termo “maquiavélico”, alguns calafrios. O “Aurélio” e o “Houaiss” que o digam.
Dificilmente a leitura fugaz de O Príncipe resistirá ao peso do preconceito tão bem alicerçado pelos costumes. Tomadas ao pé da letra, fora do conjunto da obra, suas indicações ao príncipe projetam-se certamente como escabrosas à consciência. A transcrição literal do segundo parágrafo do capitulo XV, por exemplo, - “Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade” - seria suficiente, aos olhos dos antimaquiavélicos, para fundamentar sua imoralidade, sua falta de princípios. Mas poderiam ir além, citando passagens em que o filósofo florentino defende que é mais seguro o príncipe ser temido que amado, que este deve abandonar a palavra dada quando lhe convém e “fomentar com astúcia certas inimizades”, que a aparência deve prevalecer à realidade, etc. Ali estaria, segundo eles, com dedo em riste, o autor responsável pela máxima “os fins justificam os meios”.
A desconstrução do mito, no entanto, começa precisamente neste ponto. Maquiavel nunca disse o tal provérbio (na realidade, a sentença surgiu no interior da moral jesuíta com o padre Busenbaum). Durante todo o texto, Maquiavel coloca o povo em primeiro lugar, demonstrando forte vocação democrática ao enxergar uma política injusta exatamente naquela que promove o descontentamento popular . A perfídia e a falta de escrúpulos, embora as apresente como vícios humanos, não foi sistematizada por ele. De longe se constata, aliás, sua crença na honestidade e na lealdade da vida civil . O que Maquiavel realiza, assustando a moral desprevenida, é apenas (como se fosse pouco) uma arqueologia das ações políticas na História, longa análise na qual se verificam as razões de sucesso ou infortúnio no decorrer histórico das civilizações. Para cada “maquiavelismo” acima, há uma justificativa comprometida com a história e a base empírica-comparativa pôde lhe fornecer uma conclusão amarga: “vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar”. Não se pode culpar Maquiavel por ter elucidado a realidade, por ter exposto cruamente as armadilhas da nossa constituição social. O erro persiste em não observar que a maldade dos homens precede a época de Maquiavel.
A obra não se limita, contudo, à mera exposição dos fatos históricos. A partir deles, o filósofo define o modo de agir e proceder do governante, as regras de eficácia na arte de governar. Na teoria maquiavélica (adjetivo que dá calafrios!), o homem de virtù, homem prudente e consciente de suas forças, deve estar preparado aos ímpetos desconhecidos da fortuna, do destino imprevisível, do acaso. A fortuna é como um rio caudaloso, que eventualmente pode causar enchentes, alagar planícies, destruir cidades. A virtù representa o engenho humano que constrói barragens e diques, para que na próxima cheia a impetuosidade do rio da fortuna seja controlada. A recorrência dos acontecimentos permite a análise do presente. Aí reside toda atitude política defendida por Maquiavel. A virtù deve pautar nosso livre-arbítrio, única parte em que cabe a ação sobre o destino. A sorte, fortuna, representa o outro componente inevitável e “quando um príncipe se apóia totalmente na fortuna, arruína-se segundo as variações dela”. Como se sabe em bom português, é sempre bom não dar sopa pro azar.
O mundo contemporâneo, que nos traz maior liberdade de ação e ao mesmo tempo um feixe maior de instabilidades e incertezas (sejam de ordem profissional, emotiva, espiritual), acaba de certa maneira nos aproximando da figura do príncipe. Daí decorre a importância da obra maquiavélica (arrepios!), desde que consigamos incorporar ao âmbito das relações privadas esta ética da virtù, sim, ética. O passo é longo, pois com dificuldade a aceitamos como tal. No brilhante artigo de 1949, Merleau-Ponty afirmava: “O que faz com que não se compreenda Maquiavel é que ele une o mais agudo sentimento de contingência ou do irracional do mundo com o gosto da consciência ou da liberdade do homem”. Parece que ainda não temos base empírica para poder tomar as rédeas do nosso destino. Permanecemos circunspectos e apreensivos diante dos vaticínios da fortuna, que atravessa intempestiva o dia-a-dia. Algumas vezes, ela ajuda, em outras, destrói. Mas pelo que se vê, adotar uma efetiva postura política para nossas vidas continua produzindo, como o termo “maquiavélico”, alguns calafrios. O “Aurélio” e o “Houaiss” que o digam.
Fonte:apatada
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