sábado, 22 de agosto de 2009

Lula à luz de Maquiavel

Macchiavelli

O prestigiado historiador francês Marc Ferro, numa palestra proferida em 2004, no SESC da av. Paulista, afirmou que o ensino-aprendizagem da História não tem sentido se não for estabelecida uma conexão com o presente. Na matéria abaixo, publicada em 07/08/2005, no Caderno “Mais!” da Folha de São Paulo o psicanalista Renato Mezan, professor da PUC-SP, analisa a carreira política do presidente Luís Inácio Lula da Silva sob a luz dos conceitos de Maquiavel. Pode-se concordar ou discordar, mas o texto é um prato cheio para questões de provas de História ou como tema de redação.

Agora é Lula

PIOR QUE UM CRIME, UM ERRO

RENATO MEZAN
Colunista da Folha

Questionado por Napoleão acerca da conveniência de mandar assassinar o duque de Enghien, seu ministro Talleyrand teria retrucado: “De forma alguma, majestade! É pior que um crime - é um erro”.

Diante desta resposta, muitos pensarão nas sugestões que, em seu “Príncipe”, Nicolau Maquiavel oferece aos que queiram governar um Estado. E, a propósito das revelações que têm assombrado o país, o pensador vem sendo lembrado com insistência: ao “maquiavelismo” da cúpula do PT caberia a responsabilidade pela dilapidação do capital político acumulado ao longo de 25 anos de combates. Por outro lado, seria por não ter seguido as lições do florentino -que recomendava aos governantes firmeza no trato da coisa pública - que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se teria colocado na difícil situação em que se encontra. Que pensar dessas afirmações, que permeiam muitos dos comentários sobre a crise atual?

“Virtù” e Fortuna

O pensamento de Maquiavel é mais complexo do que a caricatura que dele traçaram seus adversários, na qual ele aparece apenas como defensor da amoralidade, e mesmo da imoralidade, no exercício do poder. Na verdade o diplomata toscano foi o fundador do que hoje chamamos Ciência Política, porque compreendeu que a vida do Estado depende de um jogo de forças no qual nenhum contendor dispõe de meios de manter para sempre a sua hegemonia. Em seu vocabulário, esses contendores são o “príncipe”, os “grandes” e o “povo”.

Os escritos de Maquiavel analisam de que modo os Estados devem se organizar para atingir a grandeza, e também aconselham seus dirigentes -quer seja o Estado monárquico ou o republicano- sobre as formas de conquistar e manter o poder. A pecha de imoral se deve a que ele não recua diante do fato de que, para conseguir seus objetivos, o governante pode ter que recorrer a meios cruéis ou violentos: daí a idéia de que os fins justificam os meios.
Maquiavel jamais o disse dessa forma; para ele, os fins do Estado são a glória, a grandeza e o bem comum, e é para alcançá-los que admite o uso de quaisquer meios - bons, neutros ou maus, tanto faz. Comentando o assassinato de Remo por seu irmão Rômulo, escreve ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”: “Embora o feito o acuse, o resultado deveria escusá-lo”, pois esse crime foi necessário para estabelecer as primeiras instituições de Roma, segundo ele responsáveis pela imensa grandeza daquele povo.

É necessário compreender que Maquiavel não está interessado no aspecto moral do problema: não é que ele aprove - nem, de resto, desaprove- a ação evidentemente indigna do fundador da “urbs”. O nervo de seu argumento consiste em considerá-la unicamente sob o ângulo de sua eficácia para que Rômulo atingisse seu objetivo, que era reinar sozinho.

À disposição de fazer o que for necessário para alcançar a grandeza ou a glória cívica, Maquiavel chamou “virtù”, termo para o qual talvez a melhor tradução seja “competência”. É ela que torna o príncipe capaz de compreender o que se passa à sua volta, não se deixando enganar pelas aparências e tomando as decisões que melhor convierem: fazer alianças ou desfazê-las, mostrar-se clemente ou brutal, manter acordos ou traí-los - desde que possa neutralizar as reações dos prejudicados, que naturalmente tudo farão para se vingar. Misto de lucidez, determinação, conhecimento e habilidade, a “virtù” é a principal qualidade que um príncipe ou um Estado deve possuir para tornar-se grande e assim se manter.

Mas, para que isso aconteça, é preciso também o concurso da Fortuna -a combinação favorável das circunstâncias-, que, graças à sua elevada “virtù”, o príncipe tem condições de aproveitar: recursos naturais ou militares, fraqueza momentânea de seus adversários internos ou externos, oportunidade adequada para tomar tal ou qual medida, e assim por diante. Por outro lado, sem “virtù” o bafejo da fortuna será incapaz de impedir o enfraquecimento de um Estado, ou a ruína de quem o governa.

Apesar das inúmeras mudanças que desde o tempo de Maquiavel ocorreram na organização dos Estados, sua análise permanece válida: na arena política, confrontam-se forças de magnitude diversa, e a “virtù” continua a ser o elemento decisivo para assegurar o triunfo de uma delas. No que se refere ao governante, ela se chamará atualmente visão de estadista, habilidade política, ou como quisermos: na sua ausência, projeto algum chega a se consolidar.
Lula

Lula tem “virtù’?

Esta sumária apresentação do pensamento de Maquiavel nos permite formular uma questão: até que ponto Lula tem demonstrado possuir “virtù”? Lembremos que essa qualidade nada tem a ver com o que chamamos “virtude”, e portanto não pertence à esfera da ética. As reiteradas afirmações do presidente sobre sua probidade pessoal -”ninguém neste país é mais ético do que eu”- estão assim totalmente fora de lugar, sem contar que lembram irresistivelmente a madrasta de Branca de Neve diante do seu espelho.

Como líder sindical e como construtor de um partido, Lula demonstrou possuir “virtù” em abundância: seu carisma, sua habilidade, sua determinação são os responsáveis pela trajetória que todos conhecem.

Desde que iniciou seu mandato, porém, a quantidade de erros que cometeu, ou que permitiu que fossem cometidos por seus ministros e pela cúpula do PT, sugere que lhe falta dolorosamente aquilo que faz de alguém um grande presidente. E tivemos alguns: Getúlio e Juscelino, para ficar nesses, souberam conduzir o país a novos rumos, embora a ambos tenha faltado, no final da vida, o sopro da fortuna.

Parece-me que a atitude do presidente, inteiramente fora de tom e muito aquém do que a situação atual exigiria, provém -pelo menos até agora- dessa ausência. Como notou entre outros Maria Rita Kehl, seu discurso tem sido de modo geral despolitizado e despolitizador: fala como pessoa a outras pessoas, e não como chefe do Estado; emprega quase exclusivamente metáforas retiradas de domínios como o familiar (pais/filhos) ou do esporte (futebol), que nada têm a ver com o registro da política. Falta ao seu governo um projeto de país -e isso apesar de o PT ter atraído para suas fileiras, ao longo dos anos, o maior número de intelectuais já cooptado por um partido no Brasil.

Não é o caso de discutir aqui se a política econômica adotada por Lula trai ou não as aspirações dos petistas, ou se ele deveria ter feito alianças com tal ou qual facção em vez daquelas pelas quais optou. O que chama a atenção é a pusilanimidade do presidente diante de situações que exigiriam medidas drásticas, como no caso Waldomiro Diniz, ou, agora, frente às denúncias do “cafajefferson”. Em vez de mirar-se no exemplo de Geisel, que demitiu o general Frota quando veio à tona o que se passava em São Paulo, Lula parece ter tomado como exemplo o que fez Figueiredo no caso Riocentro, e que lhe custou a perda da autoridade pelo restante do seu mandato.

“Hybris” e “Nêmesis”

E quanto ao mensalão, mesadão e outras mazelas que vêm aparecendo no que Jô Soares chamou certa vez de “depoimintos”? Que diria Maquiavel de tais práticas? Já sabemos que ele não as condenaria pela evidente imoralidade que encerram. Suponho que se perguntaria se eram eficazes -e, com toda a certeza, diria que não.

Pois agir como tudo indica que agiram os dirigentes do PT demonstra sua ingenuidade -deixaram pistas que alguém já chamou de “amadoras”-, mas, sobretudo, é prova de uma arrogância sem par. Roberto Jefferson percebeu isso: “Eles não confiavam em nós - queriam nos comprar”.

Colocaram-se assim nas mãos de seus “clientes”, sem avaliar até que ponto os tinham sob controle, nem como, caso eles faltassem com seus compromissos, seria possível mantê-los no cabresto. Mais; desconsideraram a possibilidade de ser chantageados e de se ver na incapacidade de continuar a corrompê-los. E, por fim, liquidaram com a maior vantagem comparativa do PT no cenário político brasileiro -a imagem de um partido de cujas posições se podia discordar, mas cuja integridade estava acima de qualquer suspeita (ainda que, como em qualquer agrupamento humano, alguns de seus integrantes estivessem aquém dos padrões almejados).

Lula precisa retomar a iniciativa, e não será apregoando que é um homem honrado que o poderá fazer. Quanto a seus assessores, teriam feito melhor em não desprezar a cultura erudita. Ela lhes teria talvez permitido lembrar que, nas tragédias gregas, “hybris” (arrogância) acarreta invariavelmente “nêmesis” (vingança ou castigo). Como diziam os atenienses, “aqueles a quem os deuses querem perder, enlouquecem primeiro com o orgulho”.
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Renato Mezan é psicanalista, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor de “Psicanálise e Judaísmo” (Imago).


Fonte: Blogdojoão

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