Não se pode dar aos guardiães da liberdade num Estado direito mais útil e necessário do que o de poder acusar, perante o povo, ou diante de uni magistrado ou tribunal, os cidadãos que tenham atentado contra essa liberdade. Essa medida tem, numa república, dois efeitos extremamente importantes: o primeiro é que os cidadãos, temendo ser acusados, não ousam investir contra a segurança do Estado; se tentam fazê-lo, recebem imediatamente o castigo merecido. O outro é o de se constituir numa válvula de escape à paixão que, de um modo ou de outro, sempre fermenta contra algum cidadão. Quando essa paixão não encontra um meio legal de vir a superfície, assume uma importância extraordinária, que abala os fundamentos da república. Nada a enfraquecerá tanto, todavia, quanto organizar-se o Estado de modo tal que a fermentação de paixões possa escapar por um canal autorizado. É o que se prova com muitos exemplos, e sobretudo pelo que Tito Lívio relata a propósito de Coriolano. ,
Tito Lívio conta que a nobreza romana estava indisposta contra o povo, que lhe parecia ter adquirido demasiada autoridade desde a instituição dos tribunos. Roma sofria, nessa época - como acontecia com freqüência -, grande escassez de alimentos, e o Senado tinha mandado comprar na Sicília os cereais de que a população necessitava. Foi quando Coriolano, inimigo do partido popular, fez sentir que era chegado o momento de castigar o povo, retirando-lhe a autoridade que havia usurpado à nobreza. Para isso, queria fazê-lo passar fome, recusando a distribuição do trigo. Como essa proposta tivesse chegado a ouvidos populares, levantou-se grande indignação contra o seu autor, que teria sido morto se os tribunos não o houvessem citado para que comparecesse diante deles, a defender sua causa.
Esse acontecimento fundamenta o que disse acima: é útil e necessário que as leis da república concedam à massa um meio legítimo de manifestar a cólera que lhe possa inspirar um cidadão; quando esse meio regular é inexistente, ela recorre a meios extraordinários: e não há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se poderia imputar ao primeiro.
De fato, se um cidadão é punido por meios legais, ainda que injustamente, isso pouca ou nenhuma desordem causa na república, por ter ocorrido a punição sem recurso à força particular, ou de estrangeiros, causas ordinárias da ruína da liberdade. É uma punição baseada apenas na força da lei e da ordem pública, cujos limites são conhecidos, e cuja ação nunca é violenta o bastante para subverter a república.
Para apoiar minha opinião com exemplos, basta-me o de Coriolano, entre os antigos. Que se considere, com efeito, todos os males que teriam resultado para a república romana se tivesse ocorrido um massacre, como resultado da comoção popular. Teria havido um crime; ora, o crime provoca o medo; o medo busca meios de proteção; estes reclamam partidos; e os partidos criam as facções que dividem as cidades, e originam a ruína dos Estados.
Mas se a ação for cometida pela autoridade legítima, prevenir-se-á o desenvolvimento de todos os males que poderiam nascer do simples uso da força particular.
[ ... ]
Essa reflexões adquirem força nova quando se pensa no que sucedeu em Florença com Pedro Soderini - exclusivamente porque não existia na república um modo adequado de conter a ambição dos cidadãos que adquiriam excessivo poder.
Pode-se, de fato, considerar adequada a faculdade de acusar um homem poderoso perante tribunal composto apenas por oito juízes?
Os juízes devem ser muitos, porque o pequeno número se curva facilmente à vontade dos poderosos. Com efeito, se o Estado tivesse tido meios de defesa, e se Soderini fosse culpado, os cidadãos teriam podido satisfazer sua animosidade sem ter que implorar a assistência do exército espanhol. Se, ao contrário, sua conduta fosse legítima, não teriam ousado processá-lo, pelo temor de terminarem como réus. E assim se extinguira o furor desse ressentimento que foi causa de tantas desordens.
De onde se conclui que todas as vezes que um dos partidos que dominam uma cidade pede socorro a forças estrangeiras, deve-se atribuir isso aos defeitos da sua Constituição, e ao fato de não existir no seio daquela república uma instituição que favoreça a explosão regular dos ressentimentos que agitam com tanta freqüência os indivíduos.
Fonte: Do Livro "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 7º
Tito Lívio conta que a nobreza romana estava indisposta contra o povo, que lhe parecia ter adquirido demasiada autoridade desde a instituição dos tribunos. Roma sofria, nessa época - como acontecia com freqüência -, grande escassez de alimentos, e o Senado tinha mandado comprar na Sicília os cereais de que a população necessitava. Foi quando Coriolano, inimigo do partido popular, fez sentir que era chegado o momento de castigar o povo, retirando-lhe a autoridade que havia usurpado à nobreza. Para isso, queria fazê-lo passar fome, recusando a distribuição do trigo. Como essa proposta tivesse chegado a ouvidos populares, levantou-se grande indignação contra o seu autor, que teria sido morto se os tribunos não o houvessem citado para que comparecesse diante deles, a defender sua causa.
Esse acontecimento fundamenta o que disse acima: é útil e necessário que as leis da república concedam à massa um meio legítimo de manifestar a cólera que lhe possa inspirar um cidadão; quando esse meio regular é inexistente, ela recorre a meios extraordinários: e não há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se poderia imputar ao primeiro.
De fato, se um cidadão é punido por meios legais, ainda que injustamente, isso pouca ou nenhuma desordem causa na república, por ter ocorrido a punição sem recurso à força particular, ou de estrangeiros, causas ordinárias da ruína da liberdade. É uma punição baseada apenas na força da lei e da ordem pública, cujos limites são conhecidos, e cuja ação nunca é violenta o bastante para subverter a república.
Para apoiar minha opinião com exemplos, basta-me o de Coriolano, entre os antigos. Que se considere, com efeito, todos os males que teriam resultado para a república romana se tivesse ocorrido um massacre, como resultado da comoção popular. Teria havido um crime; ora, o crime provoca o medo; o medo busca meios de proteção; estes reclamam partidos; e os partidos criam as facções que dividem as cidades, e originam a ruína dos Estados.
Mas se a ação for cometida pela autoridade legítima, prevenir-se-á o desenvolvimento de todos os males que poderiam nascer do simples uso da força particular.
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Essa reflexões adquirem força nova quando se pensa no que sucedeu em Florença com Pedro Soderini - exclusivamente porque não existia na república um modo adequado de conter a ambição dos cidadãos que adquiriam excessivo poder.
Pode-se, de fato, considerar adequada a faculdade de acusar um homem poderoso perante tribunal composto apenas por oito juízes?
Os juízes devem ser muitos, porque o pequeno número se curva facilmente à vontade dos poderosos. Com efeito, se o Estado tivesse tido meios de defesa, e se Soderini fosse culpado, os cidadãos teriam podido satisfazer sua animosidade sem ter que implorar a assistência do exército espanhol. Se, ao contrário, sua conduta fosse legítima, não teriam ousado processá-lo, pelo temor de terminarem como réus. E assim se extinguira o furor desse ressentimento que foi causa de tantas desordens.
De onde se conclui que todas as vezes que um dos partidos que dominam uma cidade pede socorro a forças estrangeiras, deve-se atribuir isso aos defeitos da sua Constituição, e ao fato de não existir no seio daquela república uma instituição que favoreça a explosão regular dos ressentimentos que agitam com tanta freqüência os indivíduos.
Fonte: Do Livro "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 7º
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