quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - Os conflitos na República

Não quero silenciar sobre as desordens ocorridas em Roma, entre a morte dos Tarquínio e o estabelecimento dos tribunos. Mas não aceitarei as afirmativas dos que acham que aquela foi uma república tumultuada e desordenada, inferior a todos os outros governos da mesma espécie a não ser pela boa sorte que teve, e pelas virtudes militares que lhe compensaram os defeitos. Não vou negar que a sorte e a disciplina tenham contribuído para o poder de Roma; mas não se pode esquecer que uma excelente disciplina é a conseqüência necessária de leis apropriadas, e que em toda parte onde estas reinam, a sorte, por sua vez, não tarda a brilhar.

Examinemos, porém, as outras particularidades de Roma. Os que criticam as contínuas dissensões, entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares.

Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que transcorreram entre os Tarquínio e os Graco, as, desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr o sangue.

Não se pode, portanto, considerar essas dissensões como funestas, nem o Estado como inteiramente dividido, pois durante tantos anos tais diferenças só causaram o exílio de oito ou dez pessoas, e a morte de bem poucos cidadãos, sendo alguns outros multados. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação das boas leis; e estas, das desordens que quase todos condenam irrefletidamente.

De fato, se se examinar com atenção o modo como tais desordens terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o exílio, ou violências prejudiciais ao bem público, mas que, ao contrário, fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos.

E se alguém perguntar: mas não é uma conduta extraordinária, e por assim dizer selvagem, o correr todo o povo a acusar o Senado em altos brados, e o Senado [acusar] o povo, precipitando-se os cidadãos pelas ruas, fechando as lojas e abandonando a cidade? A descrição apavora.

Responderei, contudo, que cada Estado deve ter costumes próprios, por meio dos quais os populares possam satisfazer sua ambição, sobretudo nas cidades onde os assuntos importantes são decididos com a interveniência do povo.

Entre os Estados dessa categoria, Roma tinha por hábito ver os populares entregues a um comportamento extremado como o que descrevi, ou recusando-se à mobilização para a guerra, quando queriam que se fizesse alguma lei. De tal sorte que, para acalmá-los, era necessário satisfazer a sua vontade.

O desejo que sentem os povos de ser livres raramente prejudica a liberdade, porque nasce da opressão ou do temor de ser oprimido.

E se o povo se engana, os discursos em praça pública existem justamente para criticar suas idéias; basta que um homem de bem levante a voz para demonstrar com um discurso o engano do povo. Pois o povo, como disse Cícero, mesmo quando vive mergulhado na ignorância, pode compreender a verdade, e a admite com facilidade quando alguém da sua confiança sabe indicá-la.

Sejamos, portanto, avaros de críticas ao governo romano; atentemos para o fato de que tudo o que de melhor produziu essa república provém de uma boa causa. Se os tribunos devem sua origem à desordem, essa desordem merece elogios, pois o povo, dessa forma, assegurou participação no governo. E os tribunos foram os guardiães das liberdades romanas [...].


Fonte: Do Livro "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 4º

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