segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Antes do surgimento do livro O Príncipe

Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um favor divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra idéia qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.

Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas:

  1. encontram uni fundamento para a política anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para alguns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há, pois, algo - Deus, Natureza ou razão - anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
  2. afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;
  3. assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;
  4. classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com o os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso.

Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.


Fonte:Cefetsp

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Maquiavel e o Território da Política - Por Newton Bignotto





Neste programa, Newton Bignotto apresenta o contexto histórico no qual Maquiavel cresceu e desenvolveu suas reflexões.

A partir desse painel histórico, ele mostra a importância da obra de Maquiavel para se compreender a política em toda sua complexidade e o poder em todas as suas faces e possibilidades.

O professor Bignotto deixa claro através de suas explicações o quanto Maquiavel ainda precisa ser compreendido e a sua importância fundamental para todos os aspectos da vida política.

Newton Bignotto: doutor em Filosofia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor de Filosofia Política e História da Filosofia do Renascimento da UFMG. É autor de Maquiavel Republicano; O tirano e a Cidade; Origens do Republicanismo Moderno e Maquiavel.

Fonte:CPFL

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Marco Aurélio Garcia é maquiavélico

- Marco Aurélio Garcia é maquiavélico. Não no julgamento que os inimigos fazem dele, ao criticar sua dupla atuação como assessor especial do governo Lula e vice-presidente do Partido dos Trabalhadores, ou ao relembrar o episódio relacionado ao acidente com um avião da TAM em 2007 - quando foi flagrado fazendo "top-top" na janela de seu gabinete ao conferir pelo Jornal Nacional notícias que eximiam o governo de culpas. Marco Aurélio diz-se maquiavélico na forma como conduz seu relacionamento com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva: "Procuro estar perto do príncipe, mas não vê-lo o tempo todo", explica, aludindo a Nicolau Maquiavel, pensador florentino do século 16.

O "professor Marco Aurélio", ou MAG, como também é chamado no Palácio do Planalto, admite que chega a se encontrar com o chefe "cinco ou seis vezes por dia". Quinta-feira, por exemplo, interrompeu esta entrevista ao receber um bilhete de Lula para ir ter com ele. Tratariam das visitas dos presidentes Cristina Kirchner, da Argentina, e o recém-eleito Mauricio Funes, de El Salvador, que ocorreriam no dia seguinte.

Reconhece o privilégio, que de fato tem, de ocupar um cargo de primeiro escalão sem o ônus de administrar uma pasta. "A grande vantagem é que não assino ordem de pagamento, nem tenho problemas com o Tribunal de Contas", brinca. E, a despeito dos insistentes rumores de que desperta ciumeiras no Itamaraty, jura que em seis anos de governo jamais teve divergências com o chanceler Celso Amorim ou com o secretário-geral da instituição, Samuel Pinheiro Guimarães. Define-se como "conselheiro" especializado em assuntos da América Latina e parece empenhado, até o último fio da barba, numa polêmica justificativa dos voluntarismos de Hugo Chávez: "Ele é consequência, não causa da instabilidade na Venezuela".

Natural de Porto Alegre, Marco Aurélio Garcia tem 68 anos, é viúvo e pai de um filho. Cursou direito e filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ainda estudou na Escola de Altos Estudos e Ciências Sociais na França. Ex-filiado ao Partido Comunista Brasileiro, exilou-se em Santiago e em Paris durante a ditadura militar brasileira, período no qual iniciou seus contatos com agrupamentos de esquerda europeus e latino-americanos.

De volta ao Brasil, no fim da década de 70, acompanhou as greves de metalúrgicos do ABC paulista das quais Lula emergiria como líder. Foi Marco Aurélio que, em 1980, redigiu a ata de fundação do PT. Acompanhou, como secretário de relações internacionais do partido, as inúmeras viagens de Lula ao exterior; e quando o operário chegou à Presidência, em 2002, licenciou-se do Departamento de História da Unicamp para assumir o posto que ocupa até hoje.

Nesta entrevista, o "conselheiro do príncipe" revela detalhes do encontro de Barack Obama com Lula na Casa Branca, no dia 14. Estava lá, na comitiva presidencial. Diz que as conversas giraram em torno da crise econômica, mas o tema Cuba, cogitado item de pauta, apareceu mesmo foi no diálogo que o próprio Marco Aurélio manteve com o general James Jones, assessor de Obama para assuntos de Segurança Nacional. Reuniu-se por duas horas com o militar, num gabinete da Casa Branca. Mas nega que o governo brasileiro queira intermediar a reaproximação entre Havana e Washington: "O Brasil não é um país oferecido".

Quais foram as suas impressões do encontro dos presidentes Lula e Barack Obama?
Os dois falaram, principalmente, da questão econômica. O presidente Lula transmitiu sua visão sobre a incidência da crise no Brasil e ouviu de Obama a avaliação sobre a situação da crise lá. Além disso, trataram da América Latina: o presidente Lula disse que seria essencial que os EUA tivessem uma política de parceria com a região. Informou o desejo do presidente Hugo Chávez de estabelecer um bom relacionamento com os EUA. Por fim, falaram de temas bilaterais, num balanço positivo da cooperação entre EUA e Brasil. Lula expressou sua preocupação com tendências protecionistas dos americanos e tratou do tema energético, reivindicando o fim das barreiras aos biocombustíveis.

Cercando o encontro, havia comentários de que Obama pode vir a comprar mais petróleo brasileiro, e menos venezuelano, baixando a estridência de Chávez. Isso é fato?
Não há nada nesse sentido. Isso acabou crescendo porque um jornalista do (diário espanhol) El País levantou o assunto. Mas é uma ficção. O Brasil não tem excedentes petroleiros significativos para exportar. E não iríamos estabelecer concorrência com países como a Venezuela e o Equador.

Obama também teria perguntado a Lula se Mauricio Funes seria eleito presidente em El Salvador e se era confiável. O senhor confirma?
Foi o presidente Lula que tocou no assunto, elogiando Funes.

Qual foi sua missão nesse primeiro contato Lula-Obama?
A visita foi montada pelo Itamaraty, especialmente pelo embaixador Antonio Patriota. Eu tive uma reunião com o general James Jones, assessor de Segurança Nacional de Obama.

Por que o governo americano designou o general para falar com o senhor? Há um olhar militarista sobre a América Latina?
Não, nos EUA ele é tido como minha contraparte. Inclusive, na última visita que fez ao Brasil, Condoleezza Rice referiu-se a mim como national security adviser - uma figura de conselheiro presidencial, que não é ministro. O general Jones e eu falamos da próxima Cúpula das Américas, em Trinidad e Tobago. Ele me perguntou se a questão cubana teria papel central e eu disse que achava que não, o tema principal deveria ser a crise econômica. Há países na região muito penalizados pela diminuição drástica das importações americanas e das remessas dos imigrantes para casa. O tema de Cuba vai aparecer, porque há um sentimento generalizado na América Latina de que o embargo não tem mais sentido. Faz parte de uma agenda ultrapassada, da Guerra Fria. E a normalização das relações com Cuba teria um efeito extraordinário na imagem dos EUA. Penso que, num primeiro momento, as iniciativas americanas deveriam ser unilaterais, sem nenhuma condicionante.

O Brasil não arrisca seu cacife político nessa intermediação?
O Brasil não é um país oferecido. O pedido de mediação deve partir dos envolvidos e não houve isso nem da parte dos EUA nem da parte de Cuba. Obviamente temos interesse em que esse problema se resolva. A América Latina é uma região de paz e remover esse obstáculo seria um ganho para todos.

Na quarta-feira, Costa Rica e El Salvador restabeleceram relações diplomáticas com Cuba, aumentando o já amplo consenso sobre a integração da ilha ao continente e ao mundo. Isso influencia os EUA?
Seria bom que os EUA vissem esses fatos como mais um sinal de que governos com as mais distintas sensibilidades políticas na região consideram importante o diálogo.

Houve expectativas frustradas na visita? As barreiras ao etanol brasileiro não caíram...
Não somos ingênuos de achar que num sábado de manhã o presidente dos EUA iria resolver os problemas tarifários do etanol, sabendo que isso depende de negociações no Congresso. Foi um contato entre dois líderes do continente que têm hoje uma incidência forte nas decisões internacionais, e a intenção era que eles pudessem, já no começo da administração Obama, estabelecer um diálogo e uma confiança recíproca. Isso aconteceu, em um ambiente de extrema cordialidade.

Empatia pessoal é um elemento que define o jogo político?
Influencia muito, principalmente pelo estilo Lula. O presidente valoriza os contatos pessoais e sempre diz que nada substitui o "olho no olho". Depois do encontro Casa Branca, disse que viu em Obama inteligência e juventude, qualidades fundamentais. Ainda mais porque essa é uma crise com componentes culturais fortes... Lula imagina que o fato de a condução dos EUA ter sido entregue a uma pessoa de geração inclusive diferente da dele é algo muito alentador.

Bush falava espanhol com Lula, Obama não fala. A barreira da língua pode dificultar a relação entre os dois presidentes?
Olha, as pessoas sobrevalorizam o espanhol do Bush (risos). Quando Lula foi eleito, muitos diziam que ele não iria bem na política internacional porque não fala outras línguas. Eu tinha andado com ele dez anos por este mundo afora, como secretário de relações internacionais do PT, e pude ver que língua estrangeira nunca foi barreira para o entendimento dele com outros líderes.

O governo Lula foi alvo de críticas pela adoção da política Sul-Sul, sob o argumento de que ela não coloca o País entre os grandes.
Mas ela foi benéfica. Não sei de quem vem esse argumento de que o Brasil não estaria entre os grandes, o que é desmentido pela realidade. Que eu saiba, foi a partir de 2003 que o Brasil começou a frequentar as reuniões do G-8, a ter papel importante nas negociações comerciais e terminou sendo convidado para a instância máxima de governança mundial, que é o G-20. A política Sul-Sul e iniciativas como aquela que temos com a Índia e a África do Sul, e com o mundo árabe, tudo isso foi feito sem confrontação com os EUA, a União Europeia ou o Japão. Mantivemos uma relação fluida, mas não de subordinados.

Acentuar relações bilaterais com os EUA e a UE seria melhor no enfrentamento da atual crise?
Acho que não. Prova disso é que os países que estabeleceram os tratados de livre comércio têm hoje uma relação deficitária com os EUA, enquanto nós temos superávit. Quase quadruplicamos nosso comércio exterior e o diversificamos em duas direções. Uma é geográfica: não somos dependentes de nenhuma região em particular. E há outro dado importante: o Brasil não é dependente do comércio exterior, que representa 14% do PIB. Hoje o eixo da economia brasileira é interno. Por isso estamos sofrendo, mas resistindo melhor à crise do que os países com mais de 40% de seu PIB vinculado ao exterior.

Episódios recentes explicitam discordâncias do Brasil com vizinhos. Houve a crise do Equador com a Odebrecht, a do gás boliviano e as reclamações do Paraguai sobre Itaipu. Como exercer liderança nesse contexto?
O Brasil não tem aspirações de liderança. Quem aspira a liderança quebra a cara. A opção que fizemos é de integração solidária, crescermos juntos. Todos esses incidentes tiveram desfechos favoráveis. Com a Bolívia, normalizamos as relações e continuamos importando gás - e quem estabeleceu essa dependência em relação ao gás boliviano foram os governos anteriores. Com o Equador, foi um incidente que opôs uma empresa ao governo local, que, a meu ver, agiu de forma precipitada. Mas nós não perdemos um centavo e o Equador continua pagando as dívidas que havia contraído. Com o Paraguai, estamos discutindo civilizadamente as diferenças e tenho certeza de que vamos chegar a bom termo.

O presidente cobrou-o por causa desses incidentes, justamente na região onde o senhor mais atua?
Não fui cobrado nem pelo presidente nem pelo ministro Celso Amorim. Sou um assessor: a única coisa que tenho que fazer é assessorar, expressar meus pontos de vista, cumprindo as orientações do governo. O grande vetor da política externa é o Ministério das Relações Exteriores, que é extremamente qualificado em sua composição. Eu me beneficio de ter um razoável conhecimento intelectual da região e relações pessoais com muitos dirigentes. Mas não gosto de me estender sobre esses temas, porque ou se acaba fazendo autopropaganda ou se fica justificando. Não tenho do que me justificar. Estou preocupado com as minhas funções.

E quais são elas?
Houve uma opção do presidente Lula por um tipo de assessoria especial, diferente daquela de outras gestões. Fui precedido de extraordinários diplomatas. Mas, pelo fato de serem diplomatas, muitas vezes eram quase uma extensão do Itamaraty na Presidência da República. Eles tinham tarefas, algumas iguais às minhas, outras distintas, mas que correspondiam a outro estilo de governo.

Qual é seu estilo, professor?
Alguns colegas tentam dizer que eu tenho orientação ideológica. Tenho as minhas ideias, como todo mundo. Mas o sujeito que diz que o outro tem orientações ideológicas também tem as suas, às vezes mais radicais. Nunca coloquei minhas ideias acima dos interesses nacionais.

Mas em que sua atuação se diferencia do trabalho de um diplomata do Itamaraty?
Temos coisas em comum: preparamos os discursos do presidente, os pontos de conversação das reuniões de que ele vai participar, tudo isso no âmbito da política externa. Preparamos também textos de informação para ele. No meu caso, tenho cumprido muitas missões por determinação do presidente, mas nunca fiz uma viagem que não comunicasse ao Itamaraty, em que não fosse assessorado pela embaixada local. Há uma sintonia muito grande.

Em seis anos jamais ocorreram discordâncias entre a sua assessoria e o Itamaraty?
Lamento dizer, sei que isso faria a graça da entrevista (risos), mas nós não tivemos nenhuma divergência. Porque estamos sempre discutindo, em particular com o ministro Amorim. Mas, repito, o grande condutor e formulador da política externa é o presidente da República, como é de todas as outras políticas. Os ministros são executores, eu nem executor sou. Sou muito mais um conselheiro.

Ocupar um cargo de primeiro escalão sem o ônus de administrar uma pasta é um privilégio, não?
A grande vantagem é que eu não assino nenhuma ordem de pagamento ou coisas do tipo, nem vou ter problema com o Tribunal de Contas.

Como é sua interlocução com o presidente Lula?
Ele ouve muito, é de trato afável. Eu o conheço há muito tempo, temos uma relação de confiança grande. Pode ocorrer, e já ocorreu, de eu ter uma opinião distinta da dele. Mas não sou pago para estar de acordo, e sim para expressar meu ponto de vista. No fim, me submeto às decisões dele, porque sei quantos votos Lula teve e quantos votos eu não tenho. Quanto à frequência dos encontros, tem dias em que eu o vejo cinco ou seis vezes, às vezes menos. Procuro seguir a máxima do Maquiavel, em O Príncipe, que é a de estar perto do príncipe, mas não vê-lo todo o tempo.

Esse contato não causa ciúme?
Olha, nunca percebi. Tenho uma relação muito fluida com meus colegas, sobretudo com os que têm funções mais importantes que as minhas, como é o caso dos ministros. Agora, uma das muitas coisas em que estou de acordo com o presidente é quando ele diz que ciúme de homem é o pior tipo (risos).

Como o senhor explica a dificuldade brasileira nas negociações comerciais com a Argentina?
Na questão econômica, a Argentina é fundamental para nós. Os empresários brasileiros sabem disso. Sabem que, se eles arriscam a perder um pouco das vantagens comerciais, ainda assim o atrativo do mercado argentino é de tal ordem que certas renúncias serão perfeitamente factíveis. Nosso comércio com aquele país ultrapassou, em 2008, US$ 30 bilhões. Por outro lado, o Brasil é hoje o principal investidor na Argentina.

Lula influencia Chávez?
Mantemos uma relação intensa com a Venezuela, com um comércio em torno de US$ 7 bilhões. Mais do que isso, o governo Lula tem insistido muito junto ao presidente Chávez, e ele foi sensível a esse apelo, sobre a importância de escapar à maldição do petróleo, da monoprodução e da vulnerabilidade diante de oscilações do mercado mundial. A Venezuela importava tudo: ovos, leite, farinha de trigo... Isso é injustificável. Fomos nessa direção e estabelecemos um programa de cooperação entre os países. Porém, não temos direito de nos imiscuir nas decisões de política interna venezuelana. E procuramos resolver tudo na base da negociação. O presidente Lula é um incansável homem do diálogo.

Na semana passada, Chávez militarizou os aeroportos e portos do país, segundo alguns, para enfraquecer os Estados de oposição. O governo brasileiro não vê isso como sinal de autoritarismo?
Não acredito que isso ponha em risco as instituições. O presidente Fernando Henrique tomou a iniciativa de ocupar as refinarias brasileiras para reprimir greves (em 1995, FHC ordenou a ocupação de quatro refinarias da Petrobrás, para garantir o acesso a quem quisesse trabalhar). Eu me opunha a essa iniciativa, mas nunca cheguei a dizer que ela ameaçava a democracia. Não vejo riscos nesses países que têm Constituição, leis, instituições, liberdade de imprensa. O presidente Chávez briga com a imprensa? Briga, mas a imprensa também briga com ele. E não há presos políticos. Enfim, esses são elementos, a meu juízo, fundamentais na análise.

E a insistência de Chávez na reeleição ilimitada? Não é um jogo para se perpetuar no poder?
Veja bem, há países onde existem mecanismos de reeleição indefinida. A questão fundamental é saber se em 2012, quando haverá novas eleições presidenciais, os venezuelanos vão querer manter o Chávez ou não. Se eles quiserem mantê-lo, tudo bem. O Brasil é que fez uma opção por dois mandatos. É a nossa cultura política. A Venezuela até 15 anos atrás era apresentada como paradigma da democracia na região. Mas então o sistema político se desagregou. Aqueles que acham que Chávez é o causador da instabilidade na Venezuela não se dão conta de que ele é a consequência, não a causa dela. Além do mais, com que autoridade vou deitar cátedra sobre outros países, quando sei que temos aqui problemas graves no funcionamento das nossas instituições?

Essa semana Chávez anunciou que vai abrir uma ilha no Caribe para bombardeiros russos usarem como base. Não é provocação aos Estados Unidos?
Meus caros, isso, seguramente, é uma provocação bem menor que a instalação de um sistema antimísseis na Europa Central. Pode ser uma provocação verbal, mas não tem dimensão política. A Doutrina Monroe não tem mais vigor, não existe mais aquela coisa de "a América para os americanos". A determinação de criar a quarta frota é muito mais provocativa do que isso. Talvez até essa iniciativa seja uma resposta malcriada a essas tentativas. Hoje em dia os EUA mantêm relações estáveis com a Rússia. Não há mais "perigos vermelhos". Perigo vermelho é o meu time, o Internacional, que é muito bom (risos).

O PT tem a pretensão de ser um ?modelo político de exportação? para a América Latina?
O PT tem mantido com muitos partidos da região um diálogo grande. Exercemos influência sobre eles, que também já exerceram influência sobre nós. E hoje as realidades desses países são muito distintas da nossa. O Fernando Lugo elegeu-se no Paraguai praticamente sem partido, numa coalizão da qual participam partidos de direita. Na Nicarágua, também houve uma aliança com um partido de direita. No caso de El Salvador foi um enfrentamento fortíssimo com a direita, por parte da Frente Farabundo Martí. Claro que o PT tem visto isso, mas tem os próprios problemas a enfrentar, tem de se atualizar e fazer um balanço de seus quase 30 anos de vida.

O que vai ser do PT pós-Lula?
Com a chegada de Lula à Presidência, tivemos certos problemas. Talvez o PT não tenha avaliado todas as consequências do que é ser um partido de governo. E o que é isso? Um partido de governo tem, por um lado, que apoiar esse governo, mas, por outro, ser também uma espécie de consciência política, que olhe os problemas na ótica da sociedade. Em 2005 (durante a crise do mensalão), nossa resposta foi extremamente tímida, não só para a sociedade, mas para dentro do partido. Ainda está inconcluso esse processo de reflexão que o partido precisa realizar.

O momento mais dramático de sua passagem pelo governo foi o episódio do ?top-top?. Hoje, como avalia o que aconteceu?
Ainda persiste na cabeça de algumas pessoas, por desinformação ou por má-fé, a ideia de que eu estava comemorando. Nós estávamos extremamente abatidos pela tragédia da TAM, com quase 200 mortos. E víamos em parte da imprensa um julgamento precipitado no qual se tentava responsabilizar o governo integralmente. Estávamos sob tensão e, quando veio aquele desmentido, eu e meu assessor tivemos um desabafo. Eu até tinha conhecidos no avião, porque ele vinha de Porto Alegre. Claramente, houve uma invasão de privacidade por parte da televisão. Mas já vivi situações muito mais difíceis que essa, de perda, repressão, e sempre saí bem. A única preocupação que tive naquele momento foi que isso pudesse cair em cima do governo.

E o senhor pôs o cargo à disposição do presidente Lula...
Imediatamente, porque achei que, independentemente de estar convencido de que tinha sido cometida uma infâmia contra mim, uma ação sórdida dessa emissora de televisão, o episódio seria visto por milhões de pessoas e usado como um elemento injusto de crítica ao governo. Mas o presidente não aceitou meu pedido. Enfrentei alguns tipos de constrangimento, mas também quero dizer que recebi uma solidariedade muito grande de pessoas pelas quais tenho muito apreço e de outras que nem conhecia.

O que pretende fazer quando Lula deixar o Planalto?
Sempre tive profissão e estou transitoriamente no governo. Saindo daqui posso fazer uma coisa de que gosto muito, que é voltar a dar aula na Unicamp, me dedicar à pesquisa e escrever. Quero realizar uma reflexão mais ampla sobre a experiência no governo, sobre a política externa. Se virar livro, muito bem - preciso ter tempo e disciplina para fazê-lo. A única coisa que não quero é me aposentar. Vou me empenhar na campanha da nossa candidata à Presidência, se efetivamente o PT tiver o consenso em torno dela, e terá.

O que o senhor acha da eventual candidata?
Ela reúne um conjunto de condições muito favoráveis para ocupar a Presidência da República. Tem um profundo conhecimento dos problemas brasileiros, que não decorre só da sua enorme experiência administrativa, mas também de uma curiosidade intelectual que faz com que passeie tranquilamente sobre problemas teóricos e práticos do País. Dilma tem cabeça para governar, mas não se esquecerá de seguir uma regra do presidente Lula: "Em momento de dúvida, consulte o coração". O que é importante, porque o coração está à esquerda...

Fonte:Estadão

sábado, 22 de agosto de 2009

Lula à luz de Maquiavel

Macchiavelli

O prestigiado historiador francês Marc Ferro, numa palestra proferida em 2004, no SESC da av. Paulista, afirmou que o ensino-aprendizagem da História não tem sentido se não for estabelecida uma conexão com o presente. Na matéria abaixo, publicada em 07/08/2005, no Caderno “Mais!” da Folha de São Paulo o psicanalista Renato Mezan, professor da PUC-SP, analisa a carreira política do presidente Luís Inácio Lula da Silva sob a luz dos conceitos de Maquiavel. Pode-se concordar ou discordar, mas o texto é um prato cheio para questões de provas de História ou como tema de redação.

Agora é Lula

PIOR QUE UM CRIME, UM ERRO

RENATO MEZAN
Colunista da Folha

Questionado por Napoleão acerca da conveniência de mandar assassinar o duque de Enghien, seu ministro Talleyrand teria retrucado: “De forma alguma, majestade! É pior que um crime - é um erro”.

Diante desta resposta, muitos pensarão nas sugestões que, em seu “Príncipe”, Nicolau Maquiavel oferece aos que queiram governar um Estado. E, a propósito das revelações que têm assombrado o país, o pensador vem sendo lembrado com insistência: ao “maquiavelismo” da cúpula do PT caberia a responsabilidade pela dilapidação do capital político acumulado ao longo de 25 anos de combates. Por outro lado, seria por não ter seguido as lições do florentino -que recomendava aos governantes firmeza no trato da coisa pública - que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se teria colocado na difícil situação em que se encontra. Que pensar dessas afirmações, que permeiam muitos dos comentários sobre a crise atual?

“Virtù” e Fortuna

O pensamento de Maquiavel é mais complexo do que a caricatura que dele traçaram seus adversários, na qual ele aparece apenas como defensor da amoralidade, e mesmo da imoralidade, no exercício do poder. Na verdade o diplomata toscano foi o fundador do que hoje chamamos Ciência Política, porque compreendeu que a vida do Estado depende de um jogo de forças no qual nenhum contendor dispõe de meios de manter para sempre a sua hegemonia. Em seu vocabulário, esses contendores são o “príncipe”, os “grandes” e o “povo”.

Os escritos de Maquiavel analisam de que modo os Estados devem se organizar para atingir a grandeza, e também aconselham seus dirigentes -quer seja o Estado monárquico ou o republicano- sobre as formas de conquistar e manter o poder. A pecha de imoral se deve a que ele não recua diante do fato de que, para conseguir seus objetivos, o governante pode ter que recorrer a meios cruéis ou violentos: daí a idéia de que os fins justificam os meios.
Maquiavel jamais o disse dessa forma; para ele, os fins do Estado são a glória, a grandeza e o bem comum, e é para alcançá-los que admite o uso de quaisquer meios - bons, neutros ou maus, tanto faz. Comentando o assassinato de Remo por seu irmão Rômulo, escreve ele nos “Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio”: “Embora o feito o acuse, o resultado deveria escusá-lo”, pois esse crime foi necessário para estabelecer as primeiras instituições de Roma, segundo ele responsáveis pela imensa grandeza daquele povo.

É necessário compreender que Maquiavel não está interessado no aspecto moral do problema: não é que ele aprove - nem, de resto, desaprove- a ação evidentemente indigna do fundador da “urbs”. O nervo de seu argumento consiste em considerá-la unicamente sob o ângulo de sua eficácia para que Rômulo atingisse seu objetivo, que era reinar sozinho.

À disposição de fazer o que for necessário para alcançar a grandeza ou a glória cívica, Maquiavel chamou “virtù”, termo para o qual talvez a melhor tradução seja “competência”. É ela que torna o príncipe capaz de compreender o que se passa à sua volta, não se deixando enganar pelas aparências e tomando as decisões que melhor convierem: fazer alianças ou desfazê-las, mostrar-se clemente ou brutal, manter acordos ou traí-los - desde que possa neutralizar as reações dos prejudicados, que naturalmente tudo farão para se vingar. Misto de lucidez, determinação, conhecimento e habilidade, a “virtù” é a principal qualidade que um príncipe ou um Estado deve possuir para tornar-se grande e assim se manter.

Mas, para que isso aconteça, é preciso também o concurso da Fortuna -a combinação favorável das circunstâncias-, que, graças à sua elevada “virtù”, o príncipe tem condições de aproveitar: recursos naturais ou militares, fraqueza momentânea de seus adversários internos ou externos, oportunidade adequada para tomar tal ou qual medida, e assim por diante. Por outro lado, sem “virtù” o bafejo da fortuna será incapaz de impedir o enfraquecimento de um Estado, ou a ruína de quem o governa.

Apesar das inúmeras mudanças que desde o tempo de Maquiavel ocorreram na organização dos Estados, sua análise permanece válida: na arena política, confrontam-se forças de magnitude diversa, e a “virtù” continua a ser o elemento decisivo para assegurar o triunfo de uma delas. No que se refere ao governante, ela se chamará atualmente visão de estadista, habilidade política, ou como quisermos: na sua ausência, projeto algum chega a se consolidar.
Lula

Lula tem “virtù’?

Esta sumária apresentação do pensamento de Maquiavel nos permite formular uma questão: até que ponto Lula tem demonstrado possuir “virtù”? Lembremos que essa qualidade nada tem a ver com o que chamamos “virtude”, e portanto não pertence à esfera da ética. As reiteradas afirmações do presidente sobre sua probidade pessoal -”ninguém neste país é mais ético do que eu”- estão assim totalmente fora de lugar, sem contar que lembram irresistivelmente a madrasta de Branca de Neve diante do seu espelho.

Como líder sindical e como construtor de um partido, Lula demonstrou possuir “virtù” em abundância: seu carisma, sua habilidade, sua determinação são os responsáveis pela trajetória que todos conhecem.

Desde que iniciou seu mandato, porém, a quantidade de erros que cometeu, ou que permitiu que fossem cometidos por seus ministros e pela cúpula do PT, sugere que lhe falta dolorosamente aquilo que faz de alguém um grande presidente. E tivemos alguns: Getúlio e Juscelino, para ficar nesses, souberam conduzir o país a novos rumos, embora a ambos tenha faltado, no final da vida, o sopro da fortuna.

Parece-me que a atitude do presidente, inteiramente fora de tom e muito aquém do que a situação atual exigiria, provém -pelo menos até agora- dessa ausência. Como notou entre outros Maria Rita Kehl, seu discurso tem sido de modo geral despolitizado e despolitizador: fala como pessoa a outras pessoas, e não como chefe do Estado; emprega quase exclusivamente metáforas retiradas de domínios como o familiar (pais/filhos) ou do esporte (futebol), que nada têm a ver com o registro da política. Falta ao seu governo um projeto de país -e isso apesar de o PT ter atraído para suas fileiras, ao longo dos anos, o maior número de intelectuais já cooptado por um partido no Brasil.

Não é o caso de discutir aqui se a política econômica adotada por Lula trai ou não as aspirações dos petistas, ou se ele deveria ter feito alianças com tal ou qual facção em vez daquelas pelas quais optou. O que chama a atenção é a pusilanimidade do presidente diante de situações que exigiriam medidas drásticas, como no caso Waldomiro Diniz, ou, agora, frente às denúncias do “cafajefferson”. Em vez de mirar-se no exemplo de Geisel, que demitiu o general Frota quando veio à tona o que se passava em São Paulo, Lula parece ter tomado como exemplo o que fez Figueiredo no caso Riocentro, e que lhe custou a perda da autoridade pelo restante do seu mandato.

“Hybris” e “Nêmesis”

E quanto ao mensalão, mesadão e outras mazelas que vêm aparecendo no que Jô Soares chamou certa vez de “depoimintos”? Que diria Maquiavel de tais práticas? Já sabemos que ele não as condenaria pela evidente imoralidade que encerram. Suponho que se perguntaria se eram eficazes -e, com toda a certeza, diria que não.

Pois agir como tudo indica que agiram os dirigentes do PT demonstra sua ingenuidade -deixaram pistas que alguém já chamou de “amadoras”-, mas, sobretudo, é prova de uma arrogância sem par. Roberto Jefferson percebeu isso: “Eles não confiavam em nós - queriam nos comprar”.

Colocaram-se assim nas mãos de seus “clientes”, sem avaliar até que ponto os tinham sob controle, nem como, caso eles faltassem com seus compromissos, seria possível mantê-los no cabresto. Mais; desconsideraram a possibilidade de ser chantageados e de se ver na incapacidade de continuar a corrompê-los. E, por fim, liquidaram com a maior vantagem comparativa do PT no cenário político brasileiro -a imagem de um partido de cujas posições se podia discordar, mas cuja integridade estava acima de qualquer suspeita (ainda que, como em qualquer agrupamento humano, alguns de seus integrantes estivessem aquém dos padrões almejados).

Lula precisa retomar a iniciativa, e não será apregoando que é um homem honrado que o poderá fazer. Quanto a seus assessores, teriam feito melhor em não desprezar a cultura erudita. Ela lhes teria talvez permitido lembrar que, nas tragédias gregas, “hybris” (arrogância) acarreta invariavelmente “nêmesis” (vingança ou castigo). Como diziam os atenienses, “aqueles a quem os deuses querem perder, enlouquecem primeiro com o orgulho”.
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Renato Mezan é psicanalista, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autor de “Psicanálise e Judaísmo” (Imago).


Fonte: Blogdojoão

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Livro - Maquiavel No Inferno - Sebastian De Grazia




Quem foi, como viveu e quais eram exatamente as idéias de Niccolò Machiavelli, esse prolífico autor de crônicas históricas, tratados políticos, poemas, canções e peças de teatro, e cujas concepções tanto influenciaram o pensamento político moderno? Ao procurar responder a essas questões, Sebastian de Grazia escreveu uma biografia exemplar - ganhadora do Pulitzer de 1989 -, na qual os fatos da vida do pensador florentino - a família, as viagens, os temores e alegrias, as amizades, os amores - são sutilmente entretecidos a uma detida análise tanto de suas polêmicas idéias quanto das circunstâncias em que foram sendo elaboradas até se constituírem uma abrangente visão dos homens e da arte de governá-los.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - Os conflitos na República

Não quero silenciar sobre as desordens ocorridas em Roma, entre a morte dos Tarquínio e o estabelecimento dos tribunos. Mas não aceitarei as afirmativas dos que acham que aquela foi uma república tumultuada e desordenada, inferior a todos os outros governos da mesma espécie a não ser pela boa sorte que teve, e pelas virtudes militares que lhe compensaram os defeitos. Não vou negar que a sorte e a disciplina tenham contribuído para o poder de Roma; mas não se pode esquecer que uma excelente disciplina é a conseqüência necessária de leis apropriadas, e que em toda parte onde estas reinam, a sorte, por sua vez, não tarda a brilhar.

Examinemos, porém, as outras particularidades de Roma. Os que criticam as contínuas dissensões, entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais dissensões do que aos seus efeitos salutares.

Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião, como prova o que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que transcorreram entre os Tarquínio e os Graco, as, desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr o sangue.

Não se pode, portanto, considerar essas dissensões como funestas, nem o Estado como inteiramente dividido, pois durante tantos anos tais diferenças só causaram o exílio de oito ou dez pessoas, e a morte de bem poucos cidadãos, sendo alguns outros multados. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação das boas leis; e estas, das desordens que quase todos condenam irrefletidamente.

De fato, se se examinar com atenção o modo como tais desordens terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o exílio, ou violências prejudiciais ao bem público, mas que, ao contrário, fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos.

E se alguém perguntar: mas não é uma conduta extraordinária, e por assim dizer selvagem, o correr todo o povo a acusar o Senado em altos brados, e o Senado [acusar] o povo, precipitando-se os cidadãos pelas ruas, fechando as lojas e abandonando a cidade? A descrição apavora.

Responderei, contudo, que cada Estado deve ter costumes próprios, por meio dos quais os populares possam satisfazer sua ambição, sobretudo nas cidades onde os assuntos importantes são decididos com a interveniência do povo.

Entre os Estados dessa categoria, Roma tinha por hábito ver os populares entregues a um comportamento extremado como o que descrevi, ou recusando-se à mobilização para a guerra, quando queriam que se fizesse alguma lei. De tal sorte que, para acalmá-los, era necessário satisfazer a sua vontade.

O desejo que sentem os povos de ser livres raramente prejudica a liberdade, porque nasce da opressão ou do temor de ser oprimido.

E se o povo se engana, os discursos em praça pública existem justamente para criticar suas idéias; basta que um homem de bem levante a voz para demonstrar com um discurso o engano do povo. Pois o povo, como disse Cícero, mesmo quando vive mergulhado na ignorância, pode compreender a verdade, e a admite com facilidade quando alguém da sua confiança sabe indicá-la.

Sejamos, portanto, avaros de críticas ao governo romano; atentemos para o fato de que tudo o que de melhor produziu essa república provém de uma boa causa. Se os tribunos devem sua origem à desordem, essa desordem merece elogios, pois o povo, dessa forma, assegurou participação no governo. E os tribunos foram os guardiães das liberdades romanas [...].


Fonte: Do Livro "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 4º

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A tríade da filosofia política: o contrato social, a igualdade e a democracia

Assinalava Aristóteles que o homem é o único animal dotado de palavras (logos), ou seja, da capacidade de emitir um discurso articulado o que lhe permite elaborar, a partir de uma reflexão sobre um prazer e a dor, as noções de bem e de mal, de justo e de injusto, é, ao mesmo tempo, “por natureza”, o único animal político.

Ao se cogitar da justiça como centro da democracia equivale a acreditar também no conceito de igualdade e de “contrato social”. De sorte que desatar o emaranhado das relações que envolvem a justiça, igualdade e contrato é tarefa complexa, além de se constatar a íntima ligação entre tais conceitos o que nos reporta a um mergulho profunda na reflexão epistemológica de tais conceitos e valores.

Em suma, a igualdade é o meio de garantir a justiça, e esta é uma forma de perpetuar a igualdade. E ambas, pressupõem o estabelecimento de contratos.

Segundo o Dicionário Básico de Filosofia, de Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, a igualdade advém do latim aequalitas, é uma noção lógica ou matemática significando a equivalência entre duas grandezas.

Assinala mais adiante que o termo igualdade possui várias acepções entre elas: a jurídica ou a civil significando que a lei é a mesma para todos; a igualdade política significando que todos os cidadãos têm o mesmo acesso a todos os cargos públicos, sendo escolhidos em função de sua competência; a igualdade material significando que todos os homens dispõem dos mesmos recursos.

As duas primeiras igualdades, igualdade de princípios, constituem a base das democracias.Adiante, ressalta ser questionável, a igualdade natural ou biológica, pois por natureza pois não somos idênticos uns aos outros.

Questionável ou não, a igualdade é resultante de um contrato que as partes concordam e aceitam de comum acordo, com o fim de instituir entre si uma relação mútua, na qual um deles em encontra uma vantagem igual.

E sendo assim a justiça é aquilo pelo qual os contratos são assinados, pois, pelo simples fato, de que são assinados, e as partes se comprometeram a não exigir, doravante, nada além do que a parte que lhes é devida em virtude do contrato.

Não é muito original a idéia de que para fazer reinar no seio da comunidade a igualdade e a justiça, e, portanto a democracia deveria ser fundada sobre um contrato.

Não é uma idéia crassa, pois prevê a hipótese criada e, portanto, completamente artificial da sociedade política. Portanto, também a igualdade é tão arquitetada quanto a sociedade política muito mais por necessidade do que exatamente por virtude.

O velho antagonismo expresso entre o nomos e a physis, ou seja, entre a lei (criação humana) e a natureza(dado fundamental onde o homem seria apenas uma parte) se encontra no centro de violentos confrontos de várias correntes do pensamento.

Para os sofistas, a sociedade política longe de ser uma realidade natural, é apenas um artefato assim como toda lei que é apenas uma convenção. Desta forma, identificamos, os sofistas como os precursores remotos da teoria do contrato social.

Protágoras de Abdera considera que cabe ao homem “medida de todas as coisas”, afirmar a sua soberania sobre a natureza, inventando leis capazes de fazer triunfar a justiça na cidade.

Hípias de Elis sublinha a relatividade de tais leis advinda de sua origem artificial e eminentemente convencional.

Antifonte indo além, afirma que não há nada moralmente condenável em transgredir as convenções sociais, desde que isso não seja feito às claras, ou seja, expressamente.

Platão e Aristóteles combateram incessantemente as teses sofísticas. E ambos, são crédulo em Sócrates que enunciou que o indivíduo separado de sua cidade, não será mais um homem; donde de se conclui que o cidadão é efeito da cidade e , não o contrário.

Aristóteles lança pela primeira vez no texto da Ethica Nicomanchea, um juízo acerca do problema da justiça prometendo sobre ele se debruçar em outra parte da obra. Assim tal problema situa-se em determinar qual o envolvimento entre a ética e a justiça.

Assim justiça é uma virtude, e é célebre a doutrina que define a virtude como um estado intermediário entre dois vícios: o de excesso e do defeito.

No diálogo “O político” de Platão este assimila a arte “do rei” , do legislador ou do homem de Estado, à arte do pastor. Mesmo que na seqüência no diálogo venha a aderir a uma definição diferente onde a arte “do rei” como a arte “do tecelão”.

No fundo, para completo desagrado de Aristóteles, o pensamento platônico em seu conjunto não opera distinção entre o “poder do pastor” sobre o rebanho, e do “pai de família” sobre seus parentes e o poder político propriamente dito. Em síntese, não há distinção entre a cidade e uma grande família.

O próprio Aristóteles se abstém de assimilar a cidade a uma família, não deixa de concluir , por outros caminhos, pela “naturalidade” da cidade.

Assinalava que o homem é o único animal dotado de palavras (logos), ou seja, da capacidade de emitir um discurso articulado o que lhe permite elaborar, a partir de uma reflexão sobre um prazer e a dor, as noções de bem e de mal, de justo e de injusto, é, ao mesmo tempo, “por natureza”, o único animal político.

Segundo o tratado aristotélico, a cidade é definida pela reunião de várias aldeias, e, por conseguinte, pela reunião de várias famílias, portanto, é a realidade mais natural que existe e atende completamente a instintiva tendência humana de se agruparem para garantir a sua própria reprodução e sobrevivência.

Só ao homem através do logos cabe o debate filosófico e político e o acesso ao pleno conhecimento do justo e do injusto. Fundamentalmente, a justiça é fruto da arquitetura social e política humana.

A cidade além de significar a forma suprema de comunidade, que se confunde com o Estado, além dela, nada mais existe ou é palpável. A cidade basta a si mesma, gozando de autonomia, pois, a cidade é suficiente para garantir não só a “vida” mas sobretudo a “vida boa” e “feliz”.

O domínio ora do platonismo e ora do aristotelismo sobre a cultura medieval impediu que os pensadores desta época concebessem a cidade (civitas), isto é, a nação , ou o Estado como criação artificial, como produto de vontade de viver em conjunto que uma comunidade humana tivesse manifestado.

A cidade é simples etapa no caminho da cidade “celeste” ou civitas Dei (a cidade de Deus). Sendo a cidade uma imperfeita transfiguração, não podendo evitar o mal e nem representar a finalidade suprema da existência.

De qualquer modo, tanto o pensamento de São Tomás de Aquino como o de Santo Agostinho deriva assim uma ver de maneira natural a primeira associação humana, in casu, o exemplo bíblico, de Adão e Eva, desejado e modelado por Deus.

A cidade terrestre requer uma certa atenção“médica” que já inspirava a certos pensadores medievais perorações sobre a “arte de governar”.

Apenas no século XVI sem a concepção naturalista da cidade a ser questionada, com o desenvolvimento das ciências experimentais, da tecnologia, do racionalismo e do humanismo que tanto contribuiu para o enfraquecimento da concepção religiosa e política do mundo.

E ainda, a eclosão das doutrinas de Maquiavel e Jean Bodin (teóricos e defensores da soberania do Estado diante da Igreja) e de La Boétie (ferrenho crítico da servidão voluntária) mais tarde, também as idéias de Johannes Althusius e Francisco Suarez (que foram introdutores da noção de soberania popular), sem se, esquecer das maravilhosas utopias de Thomas More e Tommaso Campanella.

Assim a cidade terrestre recupera seu status pleno de cidade, e consolida-se como o horizonte último da vida humana, sendo novamente concebida como obra ou artefato.

Situa-se precisamente a cidade como uma obra de arte ou de uma “técnica” para produzir cidades, assim como para produzir qualquer coisa. Como obra de arte, a cidade abrange uma certa estética e ética.

Por outro lado, a prosperidade da burguesia revolucionária (como disse Marx), ou seja, de uma burguesia industrial e comercial, que inventando o capitalismo, assumindo o poder na Europa leva, então os filósofos a pressentirem a necessidade de fundar, distinguindo-as, as da esfera pública (lugar da luta pelo poder) e as da esfera privada destinadas ao enriquecimento individual, material e espiritual.

E aos poucos, conceber progressivamente, o laço social da esfera pública a partir do laço comercial. Em suma, visualizar o contrato, o pacto ou convenção.

Inscreve-se a problemática do estado de sociedade nos dilemas do “direito natural”, simplesmente embora se trate apenas de uma de suas variantes possíveis.

As linhas mestras do modelo do contrato social encontram-se esboçadas nas obras de dois princípios jusnaturalistas do século XVII, Hugo Grotius (Do direito da guerra e da paz, em 1625) e Samuel Pufendorf (Do direito da natureza e dos povos, em 1672).

O tema do contrato mais tarde é retomado por Hobbes no seu “Leviatã” (1651), por Locke nos seus dois “Tratados sobre governo civil” (1690) e, algumas décadas depois por Rousseau em seu “Contrato social” (1762).

Após longo e silencioso eclipse, o contrato reaparece na obra de John Rawls (Teoria da Justiça, em 1971) que significou uma surpreendente renovação da filosofia política nos países saxônicos.

O holandês Grotius sobrevivente de Europa que sai das guerras religiosas e, adentrava na Guerra dos Trinta Anos, uma terra onde reina a insegurança e a violência, escreve que o Estado nada mais é que “um corpo perfeito de pessoas livres, que se reuniram para gozar pacificamente de seus direitos e para sua utilidade comum”.

Num second round, investindo o Estado da missão sagrada de fazer reinar uma paz sem a qual as transações comerciais não poderiam prosperar, e na idéia segunda a qual a sociedade política só poderia basear-se no consentimento de cada indivíduo, no sacrifício voluntário da sua própria independência, sacrifício graças ao qual cada um recolherá o benefício de uma segurança garantida por leis, assim como por instituições encarregadas de fazer respeitá-las.

Num primeiro tempo ocorre o “pacto de associação”(pactum societatis) pelo qual os homens se reúnem para constituir uma sociedade civil.

Num segundo tempo, ocorre o “pacto da submissão”(pactum subjectionis) pelo qual os membros dessa nova comunidade designam os titulares do poder que terá o encargo de protege-los , ou seja, de fazer reinar a paz, governando-os.

A extensão de tal submissão fora exagerada por Rousseau (um refugiado político) que não poupa em despojar do povo todos os direitos, para revestir com estes os reis, com toda a arte possível (in Do contrato social, livros II, cap.2).

Efetivamente, equivale ao cap. 4 do Livro I, “Do Direito da guerra e da paz” de Grotius, obra que continua ser a base do direito internacional moderno onde é consagrado “à guerra dos súditos” contra os poderes de que eles dependem, ou seja, contra o Estado.

Grotius ainda cita não menos de sete casos em que declara ser legítima resistência ao poder soberano, idéia audaciosa para época que emergirá pungente com os revolucionários americanos e franceses, e depois com os teóricos da desobediência civil que foi rejeitada por Hobbes e Kant.

Hobbes, na aurora dos tempos modernos, foi primeiro pensador (depois de Maquivael, Locke e Spinoza) cujas idéias políticas são indissociáveis de uma vasta concepção filosófica do contrato.

Hobbes não acreditava em Deus, nem no outro mundo, nem, neste mundo, em “espíritos” que existiriam inerentes aos corpos. Segundo ele, há apenas corpos. Alguns destes corpos humanos, movidos por uma força interna chamada desejo.

Somente o desejo pode explicar os movimentos humanos, o corpo humano é sobretudo um corpo desejante. E o desejo humano é naturalmente insaciável.

Tão logo acabo de desejar um objeto, começo imediatamente a desejar outro, já pensando nos meios de garantir , além desse próximo objeto, a minha própria sobrevivência (que é a satisfação de meus desejos posteriores).

Como não se é capaz de dizer: “aqui e agora, deixo de desejar”, segue-se que o estado natural no qual os homens se encontrariam uns em relação aos outros, sem nada nem ninguém os impedisse, de desejar infinitamente, só poderia ser um estado de guerra.

Para Hobbes o “estado de natureza” é um “estado de guerra” permanente e interminável, uma guerra apresentada (pelo Leviatã em livro I, cap.13), com “uma guerra de todos contra todos (a war of every man against every man).

E a célebre fórmula tirada da edição em latim do Leviatã: homo homini lupus (o homem é o lobo do próprio homem).

Evidentemente, é impossível em tal estado sob temor e terror constantes. Para escapar ao inferno terrestre, os homens (isolado e até então prisioneiros de seus desejos solitários) decidem portanto reunir-se a fim de fazer um “contrato”(contract) ou uma convenção (covenant).

De acordo com os termos desse contrato, cada um deles escolhe livremente criar com os outros uma “república” (que se traduz no século XVII com o termo commonwealth).

Escolhe abrir mão de um desejo seu, renunciar à sua liberdade para entrega-la a uma autoridade central, de um soberano (sovereign) ou de um “corpo político”(political body)
que, doravante, será dotado de todo poder para fazer triunfar a paz e a segurança.

Os signatários desse contrato estão ligados uns aos outros, uns pelos outros. Não terão mais o direito de exigir algo além dos benefícios que se podem esperar da tranqüilidade pública.

Nem o direito de subtrair-se à comunidade criada por eles, salvo, é claro, se a segurança de suas vidas estiver em jogo, pois em face da primeira “lei da natureza”,“ninguém pode ser obrigado a fazer algum coisa contra a própria vida”.

Mas o soberano não está submetido à convenção, pois é o produto desta, e não dos que a assinaram. O soberano é o “corpo artificial” totalmente separado da comunidade política, e não um “corpo natural”.

Ainda que assuma a figura de um indivíduo (ou de um conselho ou assembléia), que resuma a uma pessoa física (monarquia), ou plúrima (oligarquia). Tudo que o soberano faça será legítimo desde que a convenção seja respeitada (ou seja, e não ameace a vida dos signatários do contrato social).

A uma coisa que importa, na ótica hobbiana é que esse “corpo” dite a lei e a faça respeitar, e que nenhum de seus súditos possa rebelar-se contra ele, exceto, aquele que sinta que sua vida está diretamente ameaçada).

Indiferente à questão de melhor regime político, Hobbes legitima um despotismo novo, o despotismo da lei que representa a única garantia da paz civil.

Hobbes por causa de tal despotismo fora duramente criticado por tal posicionamento doutrinário e irritou severamente seus contemporâneos principalmente seus os sucessores como Locke e Rousseau (mais sensíveis ao tema da liberdade que ao paz).

Aliás, há trezentos anos continua Hobbes indignando a maioria de seus leitores, principalmente por ser materialista, tanto quanto Maquiavel, a que devemos creditar toda a laicização da política.

Hobbes tenta arquitetar a paz da qual o capitalismo precisa, acredita que pode limitar o estado de guerra ao estado da natureza.

Em contrapartida, Maquiavel (há um século anterior) e mesmo Hobbes, vivendo numa fragmentária Itália medieval, não pode se traduzir no pensador da “burguesia triunfante e reluzente” ignora a problemática do contrato e, estima que a guerra se estende também ao estado social.

Mas tanto Hobbes quanto Maquiavel não acreditavam nem em Deus e nem no diabo e não confundiam o teatro da política com o da moral ou da religião.

Assim como Maquiavel, Hobbes ofende as “almas nobres” e aos humanistas. A maldição sobre Hobbes foi agravada também por Carl Schmitt, teórico do “estado total” em um texto de 1927, cuja orientação foi rudemente criticada pelo Léo Strauss em artigo de 1932, tendo ainda em 1938, Schmitt a pachorra de escrever um ensaio sobre o Leviatã que adere inescrupulosamente ao anti-semitismo e a um totalitarismo sem precedentes. E que teria conseqüências desastrosas por toda a Europa.

Hobbes em sua concepção de contrato demonstra que o mesmo se destina a garantir o mínimo de segurança pública, sem a qual não se poderia cogitar de liberdade, digna em valor e extensão.

Sem Hobbes, salienta sabiamente Strauss, não seria possível o liberalismo clássico. Enfim, o despotismo da lei e o contrato hobbesiano tem o mérito de instaurar entre seus signatários uma autêntica igualdade sendo esta a prima substancial da democracia.

Não se poderia acusar Hobbes de ter dado mais importância àquela do que esta, ao “conteúdo” do que ao “continente”.

Locke preocupava-se mais com os dois pilares da riqueza burguesa que são de um lado, a liberdade de trocas, e de outro lado, o direito à propriedade privada.

Em sua obra”Segundo tratado do governo civil” mostra que o direito à propriedade privada é um direito natural. A concepção lockiana do contrato é menos rigorosa do que a de Hobbes e mais favoráveis às liberdades individuais.

Mas Locke insiste longamente na necessidade de não confundir “estado de natureza” e “estado de guerra”. O primeiro deve ser considerado um “estado de paz, benevolência, assistência e conservação mútua” do qual nada obriga a sair.

Mas se os homens decidem sair dele, a fim de obter, do “estado” de sociedade política, ou de sociedade civil, vantagens superiores do que as tinham no estado anterior, não é então sob pressão do medo nem , por conseguinte, com a intenção de aceitar qualquer forma da sujeição.

O contrato segundo Locke não produz um soberano exterior aos seus mandatários, isento de toda obrigação.

O contrato sob a ótica lockiana cria um governo que fica sob o controle ou sob governo , daqueles que lhe confiaram a missão de governar.A regra de agir do governo é a imposta pela vontade do maior número(majority).

Locke surge assim como o primeiro teórico do governo parlamentar, capaz de ser sob a forma monárquica quanto na forma democrática de governo. Suas idéias inspirarão, na Inglaterra, a Declaração dos direitos (Bill of Rights) de 1689 e, um século depois, a Constituição Americana de 1787, e a dez primeiras emendas constitucionais (1791), sem falar da Declaração francesa dos direitos do homem (em agosto de 1789).

Por tal razão, Locke continua sendo incontestavelmente o pai do liberalismo clássico. Rousseau afirmou no famoso tratado “Do Contrato Social”, que se os homens, vagando decidem agrupar-se para viver melhor (decisão razoável, pois, ao contrário do que se diz verdadeira “natureza” do homem só se realiza plenamente, para Rousseau como para Locke, no estado social), eles não pretendem, por isso, renunciar à menor parcela da sua liberdade original.

Seu problema torna-se então “encontra uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, obedeça, entretanto apenas a si mesmo, e continue tão livre como antes.”

A solução é o pacto social cuja cláusulas se reduzem todas a uma: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda comunidade.

“A condição sendo igual para todos” argumenta Rousseau, “ ninguém tem interesse em torna-la mais onerosa para os outros”.

A comunidade política deve formar uma única pessoa pública, um só corpo que é chamado Estado, quando é passivo, “soberano, quando é ativo”. Desta forma, as leis que regem tal Estado só podem ser expressão da “vontade geral”.

Só governa o interesse público, só importa a preocupação com a coisa público (res publica, como diziam os antigos romanos).

Em suma, todo governo legítimo é republicano. Sendo a forma ideal de governo a democracia. Mais propriamente a democracia direta, pois Rousseau afasta a idéia de se delegar a liberdade e o poder a representantes.

Infelizmente, a democracia direta só é possível sob certas restritas condições tais como: exigüidade de território, economia predominantemente rural, hoje em dia, desaparecidas e nem mais realizável.

Escreve Rousseau em prol da democracia direta “se existisse um povo de deuses”, ele se governaria democraticamente”. A Revolução Francesa deve tanto a Rousseau quanto a Revolução Americana a Locke.

No entretanto, o radicalismo do primeiro resistiu menos que o pragmatismo do segundo. A Constituição dos EUA não mudou desde a independência do país, enquanto que a revolução de 1789 terminou em meio ao Terror de Robespierre e seu legado, até hoje, não deixou de ser questionado por uma parte da sociedade francesa.

Cometeu o culto rousseauísta à democracia direta, e certamente excessos terroristas de 1793 e lançaram um certo descrédito sobre as utopias republicanas.

Tais razões contribuem para explicar que, se a problemática do contrato continua a inspirar Fichte e Kant que julga necessário distanciar-se da concepção de Rousseau e, mais ainda, da própria idéia de democracia.

A teoria do contrato nunca foi uma unanimidade aceita. Spinoza a ignorou. Montesquieu também, apesar de ser hostil à ascensão da burguesia.

Contra Locke, Hume afirmava, com ironia que nenhum poder jamais nasceu do consentimento, mas da coação e da violência, que a monarquia absoluta é conseqüentemente um regime perfeitamente legítimo.

O príncipe não precisa da concordância de seus súditos para cobrar impostos. Só a variante lockiana do contrato continua depois de Fichte e Kant a angariar, uma certa, simpatia da corrente liberal.

Nas outras correntes, a teoria do contrato só encontra hostilidade principalmente por parte dos adversários da Revolução Francesa. Hegel deixa claro a crítica de moralismo abstrato e do subjetivismo do problema político.

No século de Marx e da revolução industrial, a problemática do contrato perde todo o viço e só renasce no ano de 1971 de forma apurada na obra de John Rawls.

Todos os argumentos convergem e, efetivamente confirmam ser a democracia o melhor regime possível, e procede de uma forma determinada pelo contrato social que faz da democracia o regime mais justo.

A democracia tem-se consagrado em ser regime onde mais se luta contra as desigualdades, sem sacrificar a liberdade. O próprio conceito de contrato social que surgiu e evoluiu como expressão do século XVII até os nossos dias.

A expressão contrato social possui portanto status eminentemente bastardo segundo Christian Delacampagne se por um lado, ela é conceito, também é, por outro lado, uma ficção assumida.

Em síntese, uma ficção teórica, mas permanecendo na crença a qual alguns homens no estado de natureza, teriam sido capazes de raciocinar, de negociar, de assinar contratos, ao passo que o raciocínio jurídico, assim como a linguagem que serve para transcreve-lo, só é possível no estado social.

E os homens nunca viveram como outra forma que não fosse em grupos. O ser humano é sempre um ser social, e em estado de natureza não é menos ficção do que o próprio contrato social.

O contrato social como sugere Rousseau é apenas uma hipótese. Declaravam Maquivael, Montesquieu, Marx e Foucault que toda a sociedade está constantemente em estado de guerra civil.

Infelizmente temos constatado tal fato mais amiúde, sofrendo todas as conseqüências e as neuroses de se viver sob o signo da destruição. Rezemos por uma estabilidade e por reforço na crença do contrato social e na democracia para ser ter de verdade o desenvolvimento total da humanidade.


Gisele Leite

Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, Doutora em Direito Civil. Leciona na FGV, EMERJ e Univer Cidade. Conselheira-chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas (INPJ

Fonte:jusvi

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Desmistificando Maquiavel

Em O Príncipe, o pensador italiano promove uma ruptura com a política anterior por escrever sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser.

Mais de quatro séculos nos separam da época em que viveu Nicolau Maquiavel, autor de O Príncipe, uma das obras mais controvertidas de que se tem notícia e causa principal dos ataques endereçados ao pensador italiano. Visto como um defensor da imoralidade política, seu nome virou sinônimo de tudo o que envolve falsidade e má-fé, a ponto de o adjetivo “maquiavélico” ser empregado hoje tanto no debate político quanto nas falas do dia-a-dia. Os estudos recentes sobre Maquiavel e sua obra, porém, admitem que as idéias do autor foram historicamente mal interpretadas. Segundo Bernardo Kestring, professor de Filosofia do Curso e Colégio Unificado, é necessário entender as circunstâncias históricas em que o livro foi escrito para melhor compreender a obra.

Maquiavel escreveu O Príncipe em 1513, período do Renascimento na Europa Ocidental. “A Idade Média, que tinha durado mil anos, da queda do Império Romano até o século 15, estava ficando de lado, porque novas forças políticas, idéias filosóficas e pesquisas científicas surgiam”, explica Kestring, lembrando que nessa época Copérnico afirma que o Sol, e não a Terra, é o centro do universo, descoberta que mudou a forma de se encarar o mundo. “A Igreja sustentava que a Terra era o centro do universo e os homens seriam as pessoas que a governariam segundo desígnios divinos. Com o sistema heliocêntrico, vem junto uma nova interpretação do homem. Se Deus não determina, se nós não somos o centro, então nós temos um papel que vai além da obediência cega, sem questionamentos, aos dogmas da Igreja”, diz.

A essas condições vincula-se a situação especial da Itália, pátria do autor. Nessa época, a região estava dividida em ducados e principados, que sofriam, a todo instante, invasões de estados nacionais já constituídos. “Maquiavel percebia que, a exemplo da França e da Espanha, era possível a constituição de um governo central, de uma Itália e de uma Florença unificadas, e não mais divididas internamente e saqueadas por outros países que apresentavam condições estratégicas melhores”, afirma o professor.

Kestring lembra que foi oferecido por Maquiavel a Lorenzo de Medici, então governante de Florença, terra natal do autor e de onde o mesmo havia sido expulso. O professor explica que o livro contém ensinamentos políticos sobre como um príncipe deve governar e que estratégias deve usar para manter o seu Estado. “Uma das teorias, a mais simplória, diz que essa obra é apenas uma estratégia política usada por Maquiavel para reaver o seu cargo político no governo de Florença. Por outro lado, várias teorias confluem para a idéia de que Maquiavel está mesmo preocupado com o futuro governo de Florença e sua unificação”, avalia.

Para alcançar esse fim, o pensador determina a ruptura entre a política e a ética, e transforma a primeira em um conjunto de técnicas de dominação e manipulação completamente desvinculadas de valores morais. “Um dos elementos fundamentais de O Príncipe é o caráter de conquista e manutenção do poder, ou seja, Maquiavel pretende demonstrar que a força é o principal elemento constitutivo do poder, e que o governante deve lançar mão dela para dar forma à lei e garantir a unidade da sociedade. Outro aspecto importante no texto é a dimensão simbólica do poder. Aquele que governa deve fazê-lo, conforme Maquiavel, com apoio do povo, e por isso ele deve cultivar a boa imagem, ainda que seja mais aparência do que realidade”, explica.

Segundo o professor do Unificado, é preciso diferenciar os adjetivos “maquiavélico” e “maquiaveliano”. “Segundo Maquiavel, a moralidade cristã não deve ser a forma de agir da política, que tem outros meios, racionais. O autor defende, sim, o uso da violência, da mentira, da força e da morte, mas visando ao bem público. Por isso, diz-se que o sujeito é maquiavélico quando ele usa da violência ou da mentira. Já o maquiaveliano usa essas estratégias para uma finalidade que nunca é o bem particular”, compara. Kestring sugere que os vestibulandos leiam textos de estudiosos de Maquiavel, como os italianos Norberto Bobbio, Antonio Gramsci e Alessandro Pinzani, e o brasileiro Newton Bignotto, para evitar equívocos na interpretação da obra.

Fonte:Gazeta do Povo

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Os principais pensadores políticos anteriores a Marx e Engels e suas concepções de Estado



por Danieli Veleda Moura*

Analisaremos brevemente as principais concepções de Estado anteriores a Marx e Engels a fim de entendermos como o Estado Moderno foi sendo conquistado ao longo dos tempos. Maquiavel (1469-1527) é considerado como o primeiro teórico da formação dos Estados Modernos. Suas idéias surgem com o objetivo de criar um Estado Moderno e Unitário na Itália, que estava fragmentada em comunas, propícias a dominação pela França. Para tanto, Maquiavel pensa no poder de um Príncipe, embora se considerasse um republicano democrático. Sua contribuição para a concepção de Estado Moderno não foi a elaboração de uma Teoria do Estado, mas a de ter criado uma teoria baseada na idéia de como se deve reformar os Estados. Diferentemente de Aristóteles e de pensadores da Idade Média, Maquiavel não via o Estado como forma de se assegurar a felicidade ou de se chegar ao Reino de Deus, não considerando que houvessem Estados Ideais como Platão imaginara. Para ele, a política era a arte do possível que só poderia ser efetivada levando-se em conta como as coisas estão e não como deveriam estar. Vê-se, pois, que sua Teoria é realista e prepondera em sua obra “O Príncipe” que o Estado Moderno para ser respeitado deve-se fundamentar no terror. Jean Bodin (1530-1596), por sua vez, teorizava a autonomia e a soberania do Estado Moderno, baseado em um Estado já existente, a França. Mas, foi Thomas Hobbes (1588-1679) que ganhou maior destaque neste período. Segundo Hobbes, o Estado surge para refrear os impulsos ferozes pela ânsia do poder do homem no estado natural. Ele considerava o homem como um lobo e acreditava que as restrições que os homens estabeleciam através de um contrato tinham por fim a sua própria conservação e uma vida mais confortável. Nos tempos de Rousseau as Teorias de Hobbes são refutadas por todos e a simples menção do hobbismo causava aversão. Rousseau diz que quando Hobbes se refere ao homem como um lobo ele está a se referir não à natureza humana, mas aos homens de sua época, pois surgia aí a burguesia e a formação do mercado.

Locke (1632-1704) também possuía uma concepção tipicamente burguesa, pois acreditava que o indivíduo surge antes da sociedade. Seu pensamento era o oposto de Hobbes. Para ele, o homem no estado natural está livre, mas sente a necessidade de colocar limites a esta liberdade a fim de garantir a sua propriedade. Para Emmanuel Kant (1724-1804) a soberania pertence ao povo. Contudo, ele divide os cidadãos naqueles que podem exprimir uma opinião política (proprietários) e aqueles que não podem exprimir sua opinião (servos, aprendizes, etc.). Esse era o alicerce do liberalismo, reforçado pela idéia de que a lei era sagrada e estava acima da soberania do povo, não se podendo contestar o que estava posto.

Mais ou menos na mesma época de Kant, que pregava o liberalismo do Estado Moderno, surge Rousseau (1712-1778) com uma concepção democrática burguesa. Rousseau diz que a condição natural do homem é a felicidade, a virtude e a liberdade e que estas são destruídas pela civilização. Para ele, os homens nascem livres e iguais, mas a todo lugar estão acorrentados. Considera que o homem só pode ser livre se for igual diante da lei, mas chega a compreender que existe também um problema de igualdade econômico-social. Para ele, a propriedade privada surgiu quando alguém disse: “Isso é meu!” e as pessoas acreditaram. Não compreendia que a propriedade era fruto de todo um processo econômico de desenvolvimento das forças produtivas porque também possuía uma concepção individualista burguesa.

Posteriormente Benjamim Constant (1767-1830), Charles Tocquevile (1805-1859) e Benedetto Croce (1866-1952) continuaram com idéias liberais. Mas neste meio tempo entre estes pensadores, Friedrich Hegel (1770-1831) estabelece a diferença entre Estado e sociedade civil, porém considera que só haverá sociedade civil se houver Estado e não o contrário. Ele criticava a concepção do Liberalismo, mas esbarrava em soluções conservadoras.

Vê-se, portanto que não havia uma teoria científica que explicasse o Estado, o que havia eram justificativas ideológicas. Uma visão científica de Estado só pode existir quando se toma consciência do conteúdo de classe do Estado, o que só passa a ser discutido a partir de Marx e Engels. A burguesia não poderia fazer isso, pois significaria denunciar que o Estado burguês mesmo em sua forma mais democrática consistia na dominação de uma minoria contra a maioria. Eis porque a concepção de Estado da burguesia está condenada a ser uma visão ideológica.


Danieli Veleda Moura
Bacharel em Direito e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da Fundação Universidade Federal do Rio Grande-RS.



Fonte:Revista Jusvi

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Jabor fala da colonização do Brasil ao Governo Lula Maquiavel da Silva





Da Redação - Lucas Bólico


O Fórum IEL de Gestão Empresarial desta terça-feira recebeu a palestra do jornalista e cineasta Arnaldo Jabor. Com o tema ‘Brasil 2009 – Presente e Futuro’, o comentarista do Jornal da Globo falou do processo de redemocratização do país, das heranças deixadas na sociedade brasileira pela colonização portuguesa, de crises econômicas, escândalos políticos, e claro, José Sarney não ficou de fora.

A tenebrosa inflação que assolava o país no governo Collor e no pós-impeachment foi o ponto de partida de sua dissertação. Intercalando crises políticas e econômicas – sempre bem humorado – Jabor fez sua análise dos Governos pós-ditadura no Brasil.

A corrupção é um tema constante em sua fala. Para tentar explicar as dinâmicas e os tipos de pensamentos que subsidiam a prática corruptora do país, Arnaldo Jabor retoma – e indica – Raízes do Brasil, livro de Sérgio Buarque de Holanda.

Publicado originalmente em 1936, Raízes do Brasil, aborda o processo de formação da sociedade brasileira. Destacando o legado cultural da colonização portuguesa em terras tupiniquins. Sérgio Buarque de Holanda, por meio de sua obra, revela o caráter personalista do brasileiro.

É justamente esse personalismo, que segundo Jabor, persiste após cinco séculos de descobrimento e faz com que alguns políticos usem seu poder a favor de seus próprios interesses. É o caráter personalista ‘enraizado’ na cultura brasileira que motiva o patrimonialismo, a apropriação de um bem público para uso privado, ou seja, a corrupção.

José Sarney, Renan Calheiros e Antônio Carlos Magalhães são apenas alguns dos políticos que não foram poupados das afinadas ironias do cronista. Para ele, o Nordeste do Brasil ainda é a região onde os “feudos” de alguns políticos mais existem. Maranhão por exemplo é de propriedade, segundo ele, de José Sarney.

Após analisar todos os governos desde a eleição de Tancredo Neves e a presidência de Sarney, Jabor chegou ao governo Lula. Após falar dos escândalos do primeiro mandato do petista, a quem chamou de “Maquiavel”, Arnaldo disse que é o inchamento do setor público o que mais lhe incomoda na atual gestão. Para ele, os gastos exorbitantes para o custeio da máquina pública inviabilizam o crescimento do país.

O Fórum IEL contará na noite desta quarta-feira (05) com a participação de Washington Olivetto, ministrando palestra com o tema: 'A Grande ideia'..

Colaborador:Rodney Eloy

Fonte:Olhar Direto

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Mestrinho saiu das páginas de Maquiavel




Feichas Martins
[*]


Não se trata de mero panegírico, mas a morte do ex-governador e ex-senador Gilberto Mestrinho representa grande perda para o Amazonas e para o País, porque ele atuou como cacique maior daquele estado, desde os anos 50 até a atualidade, e como articulador do orçamento federal por três vezes.

Morreu o "boto tucuxi", apelido que Mestrinho recebeu dos eleitores do interior do Amazonas, devido à sua fama de femeeiro, em grande parte estimulada pela sua elegância no vestir e seu jeito característico de falar.

Fumante inveterado, esse pisciano e autêntico amazônida sabia tudo sobre a região onde nasceu e à qual serviu como prefeito de Manaus, governador por três vezes e senador.

Gilberto Mestrinho encarnava o poder de forma duplamente maquiavélica: Sabia ser amado pelo povo, como verdadeiro populista, para governar com o seu consentimento, mas também sabia se fazer temido, agindo implacavelmente contra os seus inimigos, em busca da eficácia que realimentasse sua legitimidade.

Poder-se-ía afirmar a seu respeito que possuía a astúcia e a fortuna políticas e que encarnava "O Príncipe" saindo das páginas do escritor florentino Maquiavel, o fundador do Estado Moderno.

Como verdadeiro "cacique" político, conhecia profundamente os segredos da floresta amazônica, aprendendo com seus cabos eleitorais e ao mesmo tempo repassando aos seus principais aliados regionais e nacionais a idéia de que a Amazônia não poderia permanecer como um santuário intocável, enquanto seu povo ficasse à mercê da miséria e da penúria.

O desenvolvimento auto-sustentável da Amazônia sempre foi visto positivamente por Mestrinho, mas sem adesão aos pensamentos radicais dos ambientalistas. Ideologicamente, Mestrinho confundia seus críticos, mas ele apresentava um perfil de socialista democrático caboclo, pela sua identidade com a floresta e os rios, mais do que um perfil para a esquerda liberal democrática do PMDB, seu partido.

A história política do Amazonas se confunde com a de Gilberto Mestrinho desde a década dos 50, mas ele exerceu forte influência política fora do seu estado, principalmente nas capitais onde há migrantes oriundos da região norte do País, (como Rio de Janeiro e São Paulo), exatamente por ter atuado à frente da Comissão de Orçamento do Congresso Nacional.

Até hoje prevalece certo mistério em torno das razões que levaram Mestrinho a querer e conseguir presidir, por três vezes, a Comissão de Orçamento - um dos cargos políticos mais disputados e para o qual nunca faltam candidatos de igual ou maior peso nacional do que o velho político.


[*] Feichas Martins, articulita colaborador da ABN NEWS, é Jornalista, Mestre em Ciência Política pela UnB, Professor Universitário, Especialista em Planejamento Político-Estratégico e Consultor Político-Eleitoral, membro do Comitê de Ética e Liberdade de Expressão da Associação Brasiliense de Imprensa [ ABI-DF ] e da Federação Nacional da Imprensa [ Fenai ]

Colaborador:Rodney Eloy

Fonte: ABN

domingo, 2 de agosto de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - O direito de acusação pública

Não se pode dar aos guardiães da liberdade num Estado direito mais útil e necessário do que o de poder acusar, perante o povo, ou diante de uni magistrado ou tribunal, os cidadãos que tenham atentado contra essa liberdade. Essa medida tem, numa república, dois efeitos extremamente importantes: o primeiro é que os cidadãos, temendo ser acusados, não ousam investir contra a segurança do Estado; se tentam fazê-lo, recebem imediatamente o castigo merecido. O outro é o de se constituir numa válvula de escape à paixão que, de um modo ou de outro, sempre fermenta contra algum cidadão. Quando essa paixão não encontra um meio legal de vir a superfície, assume uma importância extraordinária, que abala os fundamentos da república. Nada a enfraquecerá tanto, todavia, quanto organizar-se o Estado de modo tal que a fermentação de paixões possa escapar por um canal autorizado. É o que se prova com muitos exemplos, e sobretudo pelo que Tito Lívio relata a propósito de Coriolano. ,

Tito Lívio conta que a nobreza romana estava indisposta contra o povo, que lhe parecia ter adquirido demasiada autoridade desde a instituição dos tribunos. Roma sofria, nessa época - como acontecia com freqüência -, grande escassez de alimentos, e o Senado tinha mandado comprar na Sicília os cereais de que a população necessitava. Foi quando Coriolano, inimigo do partido popular, fez sentir que era chegado o momento de castigar o povo, retirando-lhe a autoridade que havia usurpado à nobreza. Para isso, queria fazê-lo passar fome, recusando a distribuição do trigo. Como essa proposta tivesse chegado a ouvidos populares, levantou-se grande indignação contra o seu autor, que teria sido morto se os tribunos não o houvessem citado para que comparecesse diante deles, a defender sua causa.

Esse acontecimento fundamenta o que disse acima: é útil e necessário que as leis da república concedam à massa um meio legítimo de manifestar a cólera que lhe possa inspirar um cidadão; quando esse meio regular é inexistente, ela recorre a meios extraordinários: e não há dúvida de que estes últimos produzem males maiores do que os que se poderia imputar ao primeiro.

De fato, se um cidadão é punido por meios legais, ainda que injustamente, isso pouca ou nenhuma desordem causa na república, por ter ocorrido a punição sem recurso à força particular, ou de estrangeiros, causas ordinárias da ruína da liberdade. É uma punição baseada apenas na força da lei e da ordem pública, cujos limites são conhecidos, e cuja ação nunca é violenta o bastante para subverter a república.

Para apoiar minha opinião com exemplos, basta-me o de Coriolano, entre os antigos. Que se considere, com efeito, todos os males que teriam resultado para a república romana se tivesse ocorrido um massacre, como resultado da comoção popular. Teria havido um crime; ora, o crime provoca o medo; o medo busca meios de proteção; estes reclamam partidos; e os partidos criam as facções que dividem as cidades, e originam a ruína dos Estados.

Mas se a ação for cometida pela autoridade legítima, prevenir-se-á o desenvolvimento de todos os males que poderiam nascer do simples uso da força particular.

[ ... ]

Essa reflexões adquirem força nova quando se pensa no que sucedeu em Florença com Pedro Soderini - exclusivamente porque não existia na república um modo adequado de conter a ambição dos cidadãos que adquiriam excessivo poder.

Pode-se, de fato, considerar adequada a faculdade de acusar um homem poderoso perante tribunal composto apenas por oito juízes?

Os juízes devem ser muitos, porque o pequeno número se curva facilmente à vontade dos poderosos. Com efeito, se o Estado tivesse tido meios de defesa, e se Soderini fosse culpado, os cidadãos teriam podido satisfazer sua animosidade sem ter que implorar a assistência do exército espanhol. Se, ao contrário, sua conduta fosse legítima, não teriam ousado processá-lo, pelo temor de terminarem como réus. E assim se extinguira o furor desse ressentimento que foi causa de tantas desordens.

De onde se conclui que todas as vezes que um dos partidos que dominam uma cidade pede socorro a forças estrangeiras, deve-se atribuir isso aos defeitos da sua Constituição, e ao fato de não existir no seio daquela república uma instituição que favoreça a explosão regular dos ressentimentos que agitam com tanta freqüência os indivíduos.

Fonte: Do Livro "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 7º

sábado, 1 de agosto de 2009

O IDEAL REPUBLICANO - A apoio do povo

Chegamos agora ao caso do cidadão que se toma soberano não por meio do crime, ou da violência intolerável, mas pelo favor dos seus concidadãos: é o que se poderia chamar de governo civil.

Chegar a essa posição dependerá não inteiramente do valor ou da sorte, mas da astúcia assistida pela sorte . Chega-se a ela com o apoio da opinião popular ou da aristocracia. Em todas as cidades se podem encontrar esses dois partidos antagônicos, que nascem do desejo do povo de evitar a opressão dos poderosos, e da tendência destes últimos para comandar e oprimir o povo. Desses dois interesses que se opõem surge uma de três conseqüências: o governo absoluto, a liberdade ou a desordem.

[... ] quem se tornar um príncipe pelo favor do povo deve manter sua amizade - o que não lhe será difícil, pois a única coisa que o povo pede é não ser oprimido.

Mas aquele que chega ao poder apoiado pelos nobres, contra os desejos do povo, deve acima de tudo procurar conquistar a amizade deste - o que conseguirá facilmente, se o proteger.

Os homens que recebem o bem quando esperavam o mal se sentem ainda mais obrigados com relação ao benfeitor; por isso a massa logo se tornará ainda mais bem disposta em relação ao príncipe do que se ela própria lhe tivesse dado o poder. O príncipe poderá ganhar a simpatia do povo de muitas formas, de acordo com as circunstâncias, pois nesse ponto não há regra que possa ser estabelecida, razão pela qual não insistirei no assunto.

Direi apenas, concluindo, que é necessário que o príncipe tenha o favor do povo; senão, lhe faltarão recursos na adversidade.

Nábis, o príncipe espartano, defendendo sua pátria sustentou o assédio de toda a Grécia e mais um vitorioso exército romano. Ameaçado pelo perigo, bastou-lhe o apoio de alguns - o que não teria sido suficiente se contasse com a hostilidade do povo.

E que ninguém objete a minha opinião citando o provérbio banal, que diz: "Quem constrói sobre o povo constrói sobre o lodo", e que só se aplica ao cidadão particular que conta com a massa, convencido de que esta o protegerá, se for perseguido pelos inimigos, ou pelo governo, nesse caso, poderá iludir-se, como aconteceu em Roma com os Gracchi e em Florença com Messer Georgio Scali.

Mas quando se trata de um príncipe corajoso que se baseie no povo (que possa comandar), que não se amedronte na adversidade e não deixe de se preparar; alguém que com seu próprio valor, e com as medidas que toma, inflame a massa, nunca se decepcionará com o povo, e terá construído bons alicerces para seu poder.

Livro: "O príncipe", IX